- Guilherme Lopes Lacerda
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Predadores: A Obsessão - Capítulo 11
Fernando e Nicolas obtêm uma forma de fugir de territórios
Nos capítulos anteriores, o grupo conseguiu desfazer o território do metrô, porém os riscos foram muito altos.
Como forma de se preparar para novas ameaças e permitir um engajamento mais intenso com os predadores, Nicolas leva Fernando para conhecer um antigo parceiro e obter uma forma de fugirem de territórios.

Fernando acordou cedo no domingo. Talvez a maioria das pessoas considerasse se levantar às dez horas como tarde, mas para ele era quase como despertar antes do nascer do sol. Um leve aroma de café o capturou antes que botasse os pés no chão.
Foi para a cozinha. O cômodo, e a casa em si, não eram muito grandes, por isso tiveram que usar bem o pouco espaço que possuíam. Uma parede da cozinha era dedicada ao fogão e eletrodomésticos, logo depois havia uma linha de balcões com topo de madeira e metal para a pia. No lado oposto tinha uma mesa suspensa, e sentado em uma cadeira alta, estava Gabriel.
Se serviu do café enquanto refletia a semana que passou. Por algum motivo, esperava que a vida fosse mudar após vencerem o originador do metrô, porém ali estava ele, quase um mês depois, igual ou até pior. Era como se a realidade jogasse na sua cara que não fizera nada demais.
O cansaço com as entregas estava cobrando seu preço: acordou atrasado mais vezes do que de costume. Na quarta-feira sua demora foi de quase uma hora e arriscou-se mais do que o normal na ida até a padaria, além de fazer tudo às pressas neste dia. Não ajudava que o lucro com o estabelecimento diminuía e, por mais que chorasse pedindo descontos ao fornecedor, não conseguiu segurar a subida de preços. Os gastos minuciosamente calculados foram ralo abaixo.
Queria apenas ficar na cama e descansar, só se levantou cedo no domingo por conta de uma mensagem convocatória de Nicolas no meio da semana. Seja lá o que fossem fazer, esperava que não demorasse demais. Teria que ver uma forma de equilibrar as contas da casa mais tarde. Se continuasse nesse ritmo, talvez abandonasse o grupo. Não, não podia fazer isso. Quem cuidaria dos outros na sua ausência?
— Ô! Bom dia. — Gabriel balançou a mão perto do rosto de Fernando.
— Bom dia.
Voltou ao mundo real, trocando um olhar com o namorado, que por sua vez tomava um longo gole de café sem desviar os olhos. Fernando forçou um sorriso, não era assim que queria começar seu suposto dia de descanso.
— Desculpa, eu estava pensando no compromisso de hoje.
— Compromisso?
— Eu te disse.
Ou será que não? A bobeira da manhã ainda não passara, precisava daquele café. Sorveu um longo gole enquanto Gabriel falava:
— Não falou não.
— Talvez, provavelmente, possivelmente, eu tenha esquecido de te contar.
— É? Será? Ou será que contou pro amante e se confundiu?
Fernando estacou. Que papo era aquele de amante? Baixou a xícara de café. Um sorriso surgiu no rosto de Gabriel.
— Te peguei!
Fernando revirou os olhos em um movimento encenado.
— Um antigo colega do trabalho me convidou pra passar na casa dele. — Odiava mentir, mas seria complicado explicar a verdade. Além do mais, seu compromisso não era nenhum tipo de traição e nem faria nada errado.
— Ué? — Gabriel bebericou. — Pessoal da concessionária ainda mantém contato contigo?
— Não, também achei estranho. Mas vou ir mesmo assim, fazer algo diferente, sabe?
— Tá certo, vai ser bom para ti. Tu passa tempo demais na padaria, sei que é teu sonho, mas o ritmo está difícil… — Gabriel deixou a boca aberta por um momento, mas seja lá o que ia dizer, morreu em seus lábios.
Fernando encarou a xícara e tomou mais alguns goles. Sabia onde chegariam se deixasse o namorado continuar. Recorrer à família estava fora de questão, não conseguiria encará-los. Pensou em algo para trocar de assunto e, por sorte, ele acabara de passar por sua garganta mais uma vez.
— O café está diferente, comprou de outra marca?
— É o gosto de novos sabores. — Gabriel se levantou e foi até o armário, puxando um pacote de café fechado por um prendedor. — Comprei lá no mercado público.
— É bom, eu gostei. Foi muito caro?
O namorado encarou-o com uma expressão séria.
— Não me venha com seus papos de murrinha.
— Eu só perguntei…
— Tô sabendo. Só toma aí e fica quieto.
Fernando olhou de volta para a xícara. Apreciou o gesto de Gabriel, era raro que fizessem algo diferente. Mas não deixaria de pesquisar os preços da marca, por curiosidade, é claro.
Pouco mais de uma hora depois, estava na padaria. Havia deixado a mochila de entregas ali no dia anterior. Já dera tudo de si para inventar a mentira do ex-colega de trabalho, seria impossível criar uma justificativa para sair com a mochila junto.
Botou ela nas costas e fechou os olhos. Ir para o farol estava cada vez mais fácil e bastou um segundo para sentir a mudança no ambiente. Chegando lá, viu Nicolas ao seu lado, olhando pela janela.
— Só nós hoje? — perguntou Fernando.
— Sim. — O homem fitou o padeiro. — Eu iria sozinho, mas é bom que mais alguém no grupo saiba disso.
— O que vamos fazer?
— Encontrar uma pessoa, mas antes precisa me prometer sigilo completo da identidade dela. Até mesmo do restante do grupo.
— Espera aí! — Levantou as mãos. — Por que não vai contar para as duas?
— Porque essa pessoa gosta de manter a identidade em segredo.
— Até parece, se for um zé ruela como nós, mesmo com o nome ninguém vai saber quem… Espera! É alguém famoso né?
— Sim.
— Tipo o Brad Pitt?
— Ele aparece na televisão todo dia.
Certo, bem famoso, mas não ao nível de astro de cinema. Fernando assentiu devagar e disse:
— Tudo bem, prometo manter segredo.
— Então vamos.
Nicolas esticou a mão e segurou o pulso do colega. O cenário mudou e foram para o canteiro central de uma avenida. Para a esquerda e direita, apenas a linha de luzes denunciava a passagem de carros e motos nas quatro pistas em cada lado. Após a estrada, prédios tortos se erguiam, encostados uns contra os outros e inclinando-se na direção da avenida. Era como o território seguro em que ficavam, mas distinto também, como se algo faltasse.
O líder soltou Fernando e caminhou pelo canteiro com o chão repleto de grama alta, quase batendo nas canelas. O padeiro seguiu ao lado do companheiro a passos rápidos, quase ultrapassando-o.
— Aqui é como o farol?
— Sim, um território sem dono, sem predadores. Seguro e limitado.
— E por que eles existem? Achei que os predadores criassem o território.
— Essa é uma pergunta para a qual ainda não tenho resposta. — Nicolas ajeitou a gola. — Acredito que primeiro nasce um território, e em seguida ele é dominado por um originador.
— Então o farol pode virar um território de predador a qualquer momento?! E se ficarmos presos nele?
— Por isso estamos aqui, vamos arranjar uma forma de fugir quando quisermos.
— Entendi. — Fernando assentiu. — Até que tu pensa nas coisas.
— Sim.
Com a resposta seca, o padeiro seguiu em silêncio. Conseguia respeitar a atitude quietona de Nicolas, mas bem que ele podia tentar ser mais emotivo.
Caminharam por cerca de dez minutos no território. A todo momento tentou enxergar alguém mais adiante, uma silhueta que fosse, para indicar que estavam perto. Queria descobrir logo quem era a tal pessoa. Em dado momento, a avenida fazia uma curva acentuada para a esquerda e, no meio desta curva, Fernando viu alguém. A princípio parecia uma pessoa comum, mas conforme se aproximaram, a estranheza foi trocada por reconhecimento. Quando Nicolas falou em famoso, imaginou que fosse ser um jornalista, não um ator, mas ali estava Rafael. Um dos destaques da novela das nove.
Com o cabelo loiro volumoso e ondulado, junto a uma franja, uma camiseta branca de manga curta com estampas de flor, bermuda de tactel esverdeada e chinelos de dedo, Rafael parecia mais jovem que na novela. O próprio sorriso que ele deu ao ver os dois diminuía a idade. O único detalhe que parecia fora de lugar era uma flor branca e bonita, presa à orelha direita. Ele levantou os braços e abanou enquanto se aproximava. Nicolas parou de caminhar.
— Nicolas! — Rafael se aproximou. — Há quanto tempo? Não acreditava que estaria vivo. — Olhou para Fernando. — Até arranjou um companheiro. — Uma lágrima escorreu pelo olho direito, Rafael limpou na hora com o indicador. — Tão emocionante.
Além da estranha atitude do ator, estar na presença de alguém famoso fez com que o padeiro se reduzisse a um mero observador. Era incapaz de proferir uma palavra que fosse.
— Ele é Fernando, estamos juntos há pouco tempo, mas já eliminamos um território.
Rafael moveu o olhar para Nicolas.
— O metrô? Cara, aquele lugar era bizarro! Nunca gostei de metrô. — Seu foco se voltou ao outro. — Como você aguenta esse cara? — Apontou para Nicolas. — Eu não aguentei.
Fernando se obrigou a responder. Ora essa, não tinha mais dez anos para ficar todo tímido por aí!
— É só pensar nele como um robô, funciona bem.
— Há! Esse é dos meus. — Rafael alternou sua atenção entre os dois. — Aliás, o que você faz? Tem a ver com sua mochila?
— Rafael, objetividade. — Nicolas se intrometeu. — Conseguiu as pílulas?
— Objetividade. — Mimicou o ator, com uma voz mais fina. — Sempre com esse papinho.
Ele colocou a mão no bolso da bermuda, puxou um plástico com oito cápsulas brancas de dentro e estendeu aos dois. Nicolas fez menção de pegar as pílulas, mas Rafael se moveu rápido, segurou o pulso do outro e disse em um tom de voz baixo:
— Muitas fugas para dois. Têm quantos no grupo? Três? Não, a quantidade não bate. Quatro?
Os dois apenas se encararam por alguns segundos. Então o ator soltou Nicolas e jogou o plástico para ele.
— Lembre-se que, quanto mais gente, maior o risco. — Não havia mais sorriso no rosto do loiro.
— Você cuida das suas coisas que eu cuido das minhas — respondeu o engomadinho, guardando o plástico no bolso.
— E então? — Rafael voltou a sorrir, subindo e baixando as sobrancelhas.
— O território é um bosque. As árvores são todas iguais, é sempre noite e abafado por lá. Vai ver vários pássaros te observando, mas são inofensivos se não estiverem ativos. Não peça ajuda ou isso vai fazer os predadores te caçarem. E cuidado com o urubu.
— Parece bom. Vai servir.
Antes que uma despedida pudesse ocorrer, Nicolas segurou Fernando pelo pulso. Um momento depois estavam de volta ao farol. Foi uma interação estranha, e isso que a barra de normalidade vinha se alterando nos últimos tempos.
— O que foi isso? — perguntou Fernando.
Nicolas não respondeu, apenas o soltou, tirou as pílulas do bolso e as observou.
— Silêncio não vai funcionar comigo, tu sabe.
— É a negociação que fazemos. Rafael conhece o fornecedor e consegue as pílulas de fuga para mim. Só que ele exige a localização de um território em troca.
— Localização? Tu só disse como o lugar é.
— Há duas maneiras de descobrir um território, a primeira é senti-lo quando se forma ou quando alguém for raptado perto de você. A segunda é tendo detalhes sobre ele, facilita a visualização e transporte.
— Entendi… — Fernando coçou o queixo. — Espera, então ele é como nós? Tentando se livrar dos predadores?
— Não. — Nicolas balançou a cabeça em negativa. — Se nós caçamos para eliminar pragas, ele caça por esporte.
Fernando não pode deixar de franzir o cenho.
— Esporte? Mas…
— É a diversão dele.
— Caralho! Como que arriscar a vida numa merda dessas é a diversão de alguém?
— Pessoas podem se divertir com qualquer coisa.
— E aquilo que ele disse no final. Por que é arriscado com mais gente?
— Eu pretendia tocar neste assunto depois, mas tudo bem, está na hora. — Nicolas guardou o plástico no bolso do paletó. — Nosso poder normalmente é concedido por um objeto, nosso instrumento, ou vestígio como Rafael gosta de chamar. Minha corda, sua mochila, a jaqueta de Bárbara. Se um de nós morrer e o instrumento for tomado, o novo dono poderá usar os poderes do antigo.
Nicolas cessou a explicação. Um silêncio repentino tomou o farol enquanto Fernando aguardava uma continuação, mas esta não veio. Resolveu romper o silêncio.
— E por que não contou isso antes? — questionou, segurando os ombros de Nicolas com as duas mãos.
— Como confiar em alguém que possa ter motivações obscuras? Que pode se aproveitar de um momento de fraqueza para roubar seu vestígio? — Os olhos quase reptilianos de Nicolas o encararam. — Não posso ter um grupo desunido que se imploda na primeira dificuldade.
— E para isso tu mantém segredos que deveriam ser compartilhados? Como vamos confiar em ti assim?
— E o que faria com essa informação?
— Eu tomaria… — Fernando se interrompeu. Era exatamente o que Nicolas falara antes, tomaria cuidado com os outros. Uma semente de suspeita seria plantada em sua mente e a flor dela era capaz de impedir a colaboração entre os membros do grupo. — Está bem, eu entendi. — Passou a mão nos cabelos, se ele não gostou de ouvir isso, não queria nem imaginar a reação de Bárbara. — Quando vai contar para os outros?
— No próximo encontro.
— Deixa que eu faço isso.
— Por quê?
— Porque tu explicando é horrível. Temo até de pensar tu dando a notícia da morte de alguém.
Assim que voltou à padaria, Fernando pegou seu celular e pensou em que mensagens mandar, e em como criar um ambiente agradável o suficiente para contar o que precisava. Não precisou refletir muito, a solução estava bem na sua cara.
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