Predadores: A Obsessão - Capítulo 12

Dominique se reúne com Bárbara e Fernando para um café noturno no farol

No capítulo anterior, Nicolas mostrou para Fernando uma forma de escaparem de territórios, e também revelou que seus poderes, os vestígios, podem ser roubados.

Desenho monocromático. O desenho mostra o topo de um promontório com uma mesa de plástico com um pote com pães e sucos de caixinha em cima, ao redor dela há 3 cadeiras de praia. No horizonte vemos o mar refletindo a luz da lua cheia no céu. No centro da imagem há o número doze para indicar o capítulo.

Seria apenas uma noite comum se não fosse por uma repentina ligação de Fernando alguns dias antes. Quase que Dominique não atendeu, aquele número desconhecido só podia ser coisa de gente querendo dar golpe, mas no fim a curiosidade triunfou sobre a cautela e a ligação foi atendida.

A chamada foi curta, porém suficiente para deixá-la animada. Marcara um encontro com o grupo! Depois do último, apesar de serem vitoriosos, temeu que não fossem chamá-la. Ao que parecia, suas preocupações eram infundadas, botaram-na até em um chat com todos. Pedir para que seu filho lhe ensinasse a usar um celular moderno foi a melhor decisão que tomara em anos.

A vibração do alarme a tirou de seus pensamentos. Vinte e duas horas, o momento da reunião. Sentou-se na cama e olhou para a porta trancada. Não gostava de fazer isso, mas desde que acabou no hospital, passaram a cuidá-la mais de perto. Isso, claro, nos primeiros dias. Estavam mais relaxados, porém ainda havia um risco. E era mais fácil explicar uma porta trancada do que um desaparecimento temporário.

Já estava vestida com as roupas de exercício que Nicolas conseguiu após o último território. O líder do grupo sabia ser discreto e foi esforçado o suficiente para encontrar um conjunto igual ao antigo, descartado no fundo de uma lixeira muitos dias atrás. Esperava não sujar as vestimentas novas com sangue.

Fechou os olhos e imaginou o farol. Não tinha Nicolas para guiá-la desta vez, mas ele a instruíra como fazer e, durante algumas noites tediosas, foi sozinha até lá. Não encontrou nada demais, mas era melhor que ficar presa na casa, à mercê do tédio. Nunca superaria isso, porém sentia que não precisava. Deus agira sobre ela, ainda que de forma pouco convencional.

Um sorriso cruzou seus lábios enquanto sentia a viagem acontecendo, e logo estava de pé no interior do farol. Enxergou Fernando e Bárbara no exterior da construção, à beira do promontório, e desceu para encontrá-los. Só quando sentiu a resistência e os pequenos buracos da escada de metal nos pés notou que estava descalça. Pensou em voltar, mas era uma sensação agradável e há muito esquecida. Aguentaria ficar um tempo sem calçado, os jovens entenderiam.

Continuou seu caminho, passando do metal para a frieza da pedra no exterior. A maresia a atingiu de forma que não sentia há muitos anos, trazendo calafrios em suas pernas.

Encontrou com os dois companheiros sentados em cadeiras de praia, e havia uma vazia para ela. Estavam reunidos em volta de uma mesa de plástico, do tipo que se remove as pernas quando guarda, com dois potes brancos semitransparentes em cima. Não conseguiu ver o conteúdo, mas tudo bem, descobriria em breve. A noite sem nuvens e a lua cheia e cintilante davam conta de iluminar o ambiente mais que o necessário. Havia algo de especial naquele território.

— Boa noite, jovens! — disse, cumprimentando os dois com um beijo no rosto.

Após os cumprimentos, Bárbara baixou os olhos e levantou uma sobrancelha.

— Tu… esqueceu os tênis? — perguntou ela.

— Esqueci. — Fitou seus pés mais uma vez. — Agora é tarde, além do mais, é meio libertador andar descalça.

— Por essa lógica, andar sem roupas também é libertador — replicou a mulher mais nova.

— Tem razão, acho que vou fazer isso na próxima vez.

— Por favor, não — disse Fernando.

— “Por favor”? Estou tão mal assim?

— Não, não, claro que não! — respondeu ele, balançando as mãos espalmadas.

— Talvez até seja uma boa ideia — disse Bárbara. — Finalmente veremos Nicolas esboçar algo que não seja uma cara séria.

— Não diga isso do rapaz! — Dominique cruzou os braços. — Ele só não sabe se expressar direito.

— Conheço gente que não sabe se expressar, e não é o caso de Nicolas. Pensando melhor, talvez ele nem fosse dar bola. — Bárbara fechou a cara e imitou uma expressão séria, seguida de uma voz mais grossa e sem emoções. — Boa ideia Dominique, assim os predadores não têm como nos agarrar pelas roupas. Muito eficiente.

Fernando tentou segurar uma risada, mas ela logo escapou. Foi contagiante, infectando Dominique e Bárbara com a mesma intensidade. Como sentia falta disso! Dos momentos de diversão e alegria, tão gostosos e valiosos. Ainda se recuperando, a idosa se sentou na cadeira de praia restante. Era um arranjo único, nunca imaginaria que algum dia se reuniria com pessoas tão jovens no topo de um farol misterioso e mágico.

— Agora que Dominique chegou… — disse Bárbara, ainda com o resquício de um sorriso no rosto. — Dá para abrir?

— Esfomeado é foda. — Fernando fechou os olhos, prensou os lábios e balançou a cabeça, em um gesto decepcionado. Em seguida tirou a tampa dos potes e colocou embaixo dos mesmos. Dentro do primeiro havia cuecas viradas e no segundo pães compridos, fatiados e polvilhados com um pouco de farinha na parte de cima.

— Posso pegar? — perguntou Dominique, que foi respondida com um aceno positivo de Fernando.

Começou com uma cueca virada. Na primeira abocanhada, já sentiu a quantidade de açúcar da comida, na medida certa para ser deliciosa e fazer seu médico lhe xingar por comer essas besteiras. Ora, o doutor não sabia o que era ser velho! Queria ver ele se conter quando chegasse aos setenta.

— Está ótimo! — Esticou a mão para pegar mais uma das delícias açucaradas.

Bárbara atacava sua terceira cueca virada quando Dominique finalizou sua segunda e resolveu provar dos curiosos pães. Pegou um pedaço, era um pouco mais pesado do que esperava, mas uma leve apertada revelou sua fofura. Logo descobriu a origem do peso extra, o interior estava recheado com queijo e cubos de calabresa.

Enquanto se ocupavam com a comida, Fernando abriu a mochila de entregas, tirou três caixinhas pequenas com suco de uva e as pôs em cima da mesa.

— Para desembuchar.

Dominique ficou grata, tornou-se difícil de engolir tudo. Estava prestes a pegar um dos sucos quando Bárbara falou:

— Poxa, tu faz cueca virada e pão recheado, mas daí trouxe suco de uva de caixinha?! Quebrou todo o clima.

— Tá abusada, já. — Um pequeno sorriso surgiu no canto da boca de Fernando. — Queria que eu colhesse uvas no meio da cidade e pisoteasse elas para fazer suco?

Dominique já havia pegado o seu e agora observava os dois na discussão amigável.

— Devia ter ido até Bento comprar um dos bons.

Bárbara tentou pegar uma das caixinhas, mas Fernando se lançou sobre elas antes, pegando as restantes e mantendo fora do alcance da mulher.

— Reclamou, fica sem.

A moça bufou e olhou para Dominique.

— Senhora, vai dividir comigo, né? — pediu ela, em um tom que sugeria uma ordem.

Dominique olhou para seu suco. Tirou o canudo do plástico e com ele furou o fino alumínio da abertura. Levantou o olhar para Bárbara e respondeu:

— Não.

E então gargalhou. Uma sensação gostosa tomou conta de si, quase como se seu corpo tivesse esquecido o que era rir sem preocupações. Se conheciam há pouco, mas gostava daqueles jovens e sentia que gostavam dela. Há quanto tempo não fazia novos amigos? Há quanto tempo não conversava com pessoas novas?

Fernando devolveu o suco para Bárbara e terminaram o lanche com conversas amigáveis. Descobriu que os dois eram de Porto Alegre, moravam perto um do outro, inclusive. Coisa curiosa a vida, duas pessoas tão próximas que nunca se viram antes. Revelou aos dois que morava em Niterói, Rio de Janeiro.

— Odeio quebrar o clima — disse Fernando, fechando os potes agora vazios. — Mas preciso falar algo.

Dominique e Bárbara trocaram um breve olhar. A jovem não falou nada, mas expressou um pouco de desagrado com o que estava por vir.

— Estive esses dias com Nicolas e conversamos sobre alguns assuntos. — Ele entrelaçou os dedos, levantando e baixando cada um deles em sequência.

— Lá vem… — sussurrou Bárbara.

— Não é nada tão impactante! — Ele separou as mãos e abanou-as para a frente. — Apenas algo que deveriam todos saber. A questão é: se encontrarmos alguma pessoa como nós daqui para frente, é bom tomar cuidado. Nicolas me… disse após uma certa pressionada, que é possível roubar nossos poderes se pegarem o objeto que nos concede eles e nos matar.

— Como que isso não é impactante? — A jovem deu um soco no braço da cadeira de praia.

— Calma, Bárbara — disse Dominique. — Deixa ele terminar primeiro.

— Não tem muito mais, era basicamente isso. — Fernando esfregou as mãos no rosto. — É impactante sim, falei besteira. Nicolas disse que não falou disso antes para não gerar desconfiança.

— Não que funcione muito, né? — disse Bárbara, indignada. — Eu já estava desconfiada dele e agora estou mais. Isso não é coisa que se oculte!

— Mas faz sentido, não? — Dominique botou a mão no ombro da colega. — Se estivéssemos em alerta um contra o outro, nosso trabalho em equipe não seria tão bom.

— Eu estava lá para ser uma parede contra ataques e faria isso com ou sem segredos — resmungou Bárbara.

— E agora que todos nos conhecemos, Nicolas revelou isso. — Dominique sorriu. — Era só uma precaução temporária.

— E o que mais ele esconde? — Bárbara olhou com raiva para Fernando. — Sabe de alguma coisa?!

— Eu teria dito se soubesse.

— Será mesmo?

— Não dá para culpar o coitado — interveio Dominique.

Bárbara cruzou os braços, respirou fundo e esfregou os olhos com as palmas da mão.

— É, desculpa. Estourei de novo.

— Pelo menos não usou a jaqueta — disse Fernando, um leve sorriso se formando no rosto. — Seria bem pior para mim.

— Falando em jaqueta… — Bárbara olhou para Dominique. — Nicolas é a corda bizarra, Fernando é a mochila, eu a jaqueta, e tu?

— É até estranho dizer isso, mas eu não tenho um objeto que me dá poderes — respondeu Dominique. — É meu próprio corpo, pelo menos é isso que sinto.

— Então, em teoria, não podem roubar sua habilidade? — perguntou Fernando.

— Ou pode ser algum órgão dentro dela — disse Bárbara. — Só arrancar ele.

— Ah meu deus! Que coisa horrível. — Fernando fez uma careta de nojo. — Acho que está na hora de trocar de assunto.

O papo tornou-se mais ameno, como a novela das nove, que Fernando disse não ver, mas conhecia os pormenores como ninguém. Também ficaram sabendo de mais detalhes da profissão de Fernando, incluindo dos terríveis horários que ele atuava. Falaram um pouco de suas famílias, seus relacionamentos e de algumas besteiras engraçadas que fizeram durante a vida.

Dominique sentiu de repente um tremor e a conversa se interrompeu. Não foi físico, tudo na mesa estava no mesmo lugar, mas algo em seu ser ressoou, como um sino badalando diversas vezes.

— Sentiram, também? — perguntou Dominique, levando a mão ao peito. A sensação ainda estava lá.

— Sim. — Bárbara alternou o olhar entre os dois. — O que foi isso?

— Eu não sei — respondeu Fernando. — Vou sair e ligar para Nicolas…

Antes mesmo de tirar o celular do bolso, o homem que procuravam surgiu no farol. Estava com a respiração acelerada, porém mantinha a expressão de sempre.

— Que bom, todos estão aqui — disse ele. — Surgiu um território novo, temos que investigar.

— Eu não acho que estamos preparados — protestou Fernando.

— Só vamos investigar, não vamos atrás do originador.

— Temos que agir antes que o território faça vítimas — disse Dominique, se levantando. — É bom investigarmos agora mesmo.

— Da última vez foi o mesmo papo — disse Fernando.

— E não tínhamos um método de fuga. — Nicolas mexeu na corda em seu pescoço. — Agora temos.

— Estranho dizer isso, mas concordo. — Bárbara se levantou da cadeira. — Principalmente com Dominique.

— Se todos aceitam… — Fernando se levantou. — Acho bom entregar as pílulas, não?

— Entregarei.

O homem entregou duas cápsulas para Dominique, Bárbara e Fernando. Passando as instruções de engolirem e pensarem no farol em seguida, assim seriam retirados do território.

— Agora, sobre como chegar ao nosso destino — disse Nicolas. — Ele recém se formou e por sorte estamos dentro de um território para senti-lo. Concentrem-se no abalo que surgiu há pouco, sentirão junto uma força, uma espécie de sucção, querendo levá-los a outro lugar. Se deixem serem carregados.

Dominique obedeceu, fechando os olhos e focando-se no tremor que percorreu seu corpo. Não havia nenhuma força sugando-a, e sim fragmentos de conversas, palavras soltas ao ar sem contexto ou objetivo. Poderia seguir elas se quisesse.

— Estão todos sentindo? — perguntou Nicolas, e ao receber uma resposta afirmativa, continuou: — Vão para lá.

Sentiu os pés deixando o chão e ficou assustada por um momento, imaginando que os membros adormeciam. No entanto, foi apenas temporário, pois seguiu uma sensação de envolvimento por algo, ou alguém. As conversas que ouvia se intensificaram e seu conteúdo tornou-se mais claro. Eram lamúrias, monólogos intermináveis que questionavam certo e errado.

Sentiu um par de olhos em si. Eles observavam-na atrás da lente de óculos, eram inocentes e, ao mesmo tempo, manchados pelo conhecimento do pecado. Não pôde evitá-los, já estava a caminho do território e tudo que pode fazer era deixá-los examinarem-na.

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