Predadores: A Obsessão - Capítulo 14

Ainda que tenham sobrevivido, o preço foi alto. O grupo volta derrotado ao farol.

No capítulo anterior, o grupo entrou em um território recém nascido. Logo descobriram que o local era repleto de alucinações e, em uma dessas, acabaram confundindo pessoas com predadores. A luta terminou com os desconhecidos mortos, e o grupo traumatizado.

Desenho monocromático. O desenho exibe Nicolas, um homem com roupas formais e uma corda de forca no pescoço, em frente a um espelho de banheiro. Na imagem só mostra do nariz para baixo. Nicolas está segurando entre seu polegar e indicador uma escama preta. No lado direito da bancada da pia há uma escova de dente, e do outro lado um relógio marcando uma hora da madrugada. No topo esquerdo da imagem há o número quatorze para indicar o capítulo.

Voltaram ao farol antes que Dominique acertasse um soco em Nicolas. O líder agiu rápido, bastou ela iniciar o movimento para que duas cordas restringissem seu braço direito, outras surgiram para segurar os demais membros e, no meio de um grito, ele enfiou uma pílula goela abaixo nela.

Um filtro foi retirado de sua visão, a voz que sussurrava em sua mente desaparecera e ficou apenas o próprio arrependimento. Os ombros caíram enquanto observava o braço destroçado de Nicolas. No entanto, não foi capaz de formular um pedido de ajuda, sequer de mover-se para auxiliar o líder. A mente estava presa nos últimos minutos, repassando todos os eventos. As mortes, a discussão, a quase briga. Se tivesse acertado o soco, teria assassinado o homem. Sabia muito bem o peso por trás do golpe. Por que quis matá-lo?

Viu Fernando se recuperar um pouco de seu estado quebrado de espírito para curar Nicolas. Seria uma hora muito dolorosa para o padeiro, Dominique devia ficar junto com ele nem que fosse para distrair da dor. Não conseguiu. Algo em si estava diferente, uma indignação que pensou ter se livrado há muito tempo voltara. Enquanto os outros no grupo se ajudavam, ela só foi capaz de aproximar-se dos vidros do farol e olhar o mar. Nicolas foi seu alvo, mas os pensamentos em sua cabeça. Ah! Como eram destrutivos. Culpou cada um no grupo e depois a si mesma. Não podia sorrir e oferecer palavras de alento, não depois de ter desejado a morte de todos.

— Quem eram aquelas pessoas, afinal? — perguntou Bárbara depois de muito tempo.

— Não faço ideia, mas vendo que estavam todos armados, deviam caçar predadores — respondeu Nicolas.

— Como nós, então? — A voz de Fernando veio com uma pontada de dor, aquele embargo na voz, a dificuldade de superar o sofrimento para falar.

— Difícil — disse o líder. — Não vi nenhum vestígio neles e se tinham um, não usaram. Acho que só tinham as armas de fogo mesmo. Talvez fossem um grupo que sabia o que estava acontecendo e resolveram enfrentar sozinhos.

— Então como foram parar lá? Digo, fomos porque sentimos o território se formando, mas eles não devem ter sentido. E duvido que seja coincidência de estarem armados e preparados bem quando o predador os puxou.

— Não sei, precisarei investigar.

— Seria bom saber, porque olha, tem que ser muito maluco para entrar lá só e sem os nossos poderes. — O que era aquele tom de Bárbara? Deboche?

— Está culpando-os agora por terem ficado no nosso caminho? — disse Dominique com a voz mais alta que o normal e virando-se para o grupo.

Estavam todos em um estado tão lamentável que não pareciam as mesmas pessoas que riram e comeram juntos pouco tempo atrás. Sangue seco manchava o terno e calças de Nicolas na parte direita do corpo, os jeans de Bárbara revelavam a destruição que ela causou em um dos corpos e Fernando, apesar de ser o mais limpo, tinha traços de sangue do joelho para baixo, nas mãos e antebraço.

— O quê? Claro que não — defendeu-se Bárbara.

— Não é o que parece. — Dominique cerrou os punhos. — Matamos pessoas hoje. Cinco! E estamos aqui tentando entender como foram parar lá e porquê. Não é isso que deveríamos fazer. Nós… nós deveríamos nos entregar, dizer que cometemos assassinato.

A última frase fez qualquer resposta que estava prestes a sair da boca de Bárbara morrer ali mesmo.

— Se entregar para quem? Ninguém vai acreditar, aliás não foi nossa culpa — disse Nicolas, neutro como sempre. — Foi o território, o predador. Aquelas ilusões nos enganaram e não tinha como prever que nossos atacantes eram pessoas. Além do mais, eles agiram primeiro, nós só nos defendemos.

— Você deveria ter previsto isso! É nosso líder, sabe mais que qualquer um como os predadores funcionam! Por que não mandou voltarmos na primeira ilusão? — bradou ela.

— Calma, não tem como alguém pensar em tudo — disse Fernando, em tom apaziguador.

— Não, ela tem razão, é minha culpa. — Por que Nicolas não se alterava? O que tinha de errado com ele? — Eu achei que, enquanto Bárbara e eu pudéssemos escapar das ilusões, tudo ficaria bem. Me enganei, devemos deixar esse território de lado até que tenhamos uma forma confiável de passar por ele.

— Isso não resolve nada! Pessoas morreram por nossa causa… Nenhuma palavra vai trazer elas de volta, nada vai.

Por que estava discutindo? Onde queria chegar com aquilo? Seus próprios pensamentos pareciam tão nublados. Não aguentava mais ficar ali, olhando para eles, julgando os companheiros e a si mesma. Se virou na direção da escada e desceu correndo. Sabia que não precisava fazer isso, bastava um pensamento para que se visse em sua casa, mas não queria voltar. Saiu do farol e disparou pela imensidão verde daquele território vazio. Queria se cansar, queria ficar sem energias para se lamentar, queria apenas fechar os olhos e dormir.

Seu corpo, esse corpo novo, não cansava fácil. Ela correu e correu, mas quanto mais fazia isso, menos cansada se sentia. A brisa em sua face não trazia a mesma frescura de antes, agora era um vento álgido que lhe afligia o rosto e orelhas. O suor escorria por seus braços e costas como não fazia há muitos anos. Mas não conseguia se cansar.

Por fim, desistiu e rumou até o mar, tirou suas roupas e lavou o corpo na água gelada e salgada, tentando tirar os resquícios de sangue da pele. De corpo limpo, aguardou na beira da água enquanto secava.

Depois, simplesmente voltou para sua casa, para seu quarto. Afundou o rosto no travesseiro e deixou as lágrimas escorrerem dos olhos. Aquela não era liberdade que tanto desejara.

***

A partida de Dominique foi um choque. Nenhum deles teve forças para ir atrás dela, até mesmo Fernando estava cansado e dolorido demais para fazer algo. Seu braço ainda se recuperava do tratamento fornecido a Nicolas e a cabeça não conseguia acompanhar tudo que transcorria. Depois da saída da idosa, ficaram em silêncio e evitaram olhar uns para os outros. Se não fosse por Bárbara se mexer, talvez tivessem passado mais de horas ali, parados, esperando por algo que não sabiam.

— Tenho que ir. Mesmo depois disso tudo ainda tenho trabalho amanhã.

— Merda, tem razão. — Fernando juntou o que restava das forças e se levantou. Não conseguiu evitar de olhar para as marcas de sangue em si e nas roupas. — Ah cara, vai ser uma mão voltar para casa assim.

— Não é só tomar um banho?

— Sim, mas eu estava na padaria antes. Até tenho roupas de reserva, mas… Eu não quero me lavar na pia.

— Vem pro meu apê. Não é grande coisa, mas tem um chuveiro.

Quase perguntou para Bárbara se tinha certeza daquele convite, mas resolveu não. O que mais faria? Deixaria vestígios de sangue na padaria? Iria para casa todo sangrento e arriscando ser visto por alguém? Seria o inferno se alguém o visse. Seria um inferno maior ainda se o alguém fosse Gabriel.

— Aceito.

Olhou para Nicolas, quieto todo esse tempo. Ele estava com um olhar distante e pensativo. Mesmo depois do que tinham passado, era como se houvesse uma barreira entre o líder e os demais, não parecia haver abertura nem mesmo para se despedir. Mesmo assim, arriscou:

— Até mais, eu hã… sinto muito por hoje. Não ajudei muito.

— Até.

Vendo que não arrancariam muitas palavras de Nicolas, Fernando se virou para Bárbara. A mulher pegou no seu pulso e fechou os olhos por um instante. O terreno ao redor deles mudou, ficou escuro e com um cheiro de umidade, a temperatura caiu de uma hora para outra e sentiu que estavam em um ambiente fechado.

— Porra! Viemos parar no banheiro.

Bárbara o soltou e andou um pouco para o lado, pisando no pé de Fernando. Não doeu, mas isso fez a mulher recuar com um pedido de desculpas e dar com as costas em algo, espalhando o som de batida em vidro pelo pequeno cômodo.

— Porcaria! Se eu quebro o box a dona vai ficar putaça.

Conseguiu sentir a presença de Bárbara se aproximando dele. Momentos depois a luz foi acesa. O banheiro era pequeno, contendo uma pia com pasta e escova de dentes largadas em cima dela. Um espelho mostrava os dois próximos um ao outro, ambos em estado lamentável. O box em que sua anfitriã deu com as costas tinha espaço para um banho sem muitos movimentos, talvez se abrisse demais os cotovelos ia bater nas paredes.

— Desculpa, nunca surgi no banheiro antes. — Bárbara esfregou as mãos por um instante. — Vou pegar uma toalha para ti. Aguenta aí.

Ela tirou as botas com o solado sujo e saiu do banheiro, entrando na sala de estar. Fernando não resistiu à curiosidade e deu uma olhada no resto do apartamento. Era desorganizado, mas não sujo ou malcuidado. Viu algumas roupas jogadas aqui e ali, umas caixas de papelão atiradas em um canto abandonado da sala, uma televisão e um sofá.

Bárbara voltou com uma toalha em mãos. Era bege e estava dobrada de forma que mostrasse as palavras da dona no tecido. Alcançou-a para Fernando, que quase pegou, mas resolveu perguntar antes.

— Não tem uma mais velha?

— Essa é a mais velha.

— É que tem o seu nome e tal, aí né, estarei me limpando de sangue. Não quero estragar.

— Tu vai se lavar antes, sem problema.

Ele deu de ombros e quase pegou a toalha, porém Bárbara afastou a mão no último segundo.

— Esquece, pego outra.

Ela voltou segundos depois, com uma toalha azul-escura em mãos. Desta vez Fernando pegou sem muitas perguntas e fechou a porta do banheiro. Tirou as roupas, entrou no box e girou o registro. A água saiu quente, bem mais quente do que ele queria. Antes que o lombo pelasse, ajustou a temperatura. Ficou fria demais. Lidar com o chuveiro alheio sempre era um desafio. Ajustou e acertou o ponto. Começou a se lavar.

— O que acha que vai acontecer com o grupo agora? — perguntou Bárbara.

— Não faço ideia.

— Será que Dominique vai voltar?

— Eu… não sei, mas espero que sim. Queria ter ido atrás dela.

— Também, mas talvez fosse melhor deixar ela esfriar a cabeça. Falo por mim, mas prefiro ficar sozinha nessas situações. — Pausa. — Eu deveria ter notado a ilusão mais cedo. Ela botou a culpa em Nicolas, mas eu me recuperava mais rápido, devia ter visto…

Outra pausa.

— Por que eu e Nicolas escapamos tão rápido das visões?

— Gostaria de entender isso também, eu… — As imagens vieram nítidas em sua mente. A briga que tivera com o pai quase um ano após reatarem. O celular tocando, trazendo notícias que já sabia, e sendo ignorado por minutos a fio. As mensagens da mãe perguntando se compareceria ao enterro, e sua resposta negativa. Balançou a cabeça. — Tem muita coisa que não conhecemos sobre os predadores e territórios.

— Acha que Nicolas está escondendo coisas da gente?

— Ele falaria se fosse importante. Nicolas é meio insensível, mas até agora tem sido sincero.

Apesar das palavras, não conseguiu deixar de se perguntar se era o caso. O líder ocultara informações sobre os vestígios, o que mais guardava para si?

O resto do banho transcorreu em silêncio. Quando terminou, se despediu de Bárbara e agradeceu por tudo. Voltou ao farol e viu o que restava da comida que saboreavam horas atrás, parecia até ter se passado em outra vida. Tampou os potes, desmontou a mesa e dobrou as cadeiras, empilhando tudo e levando de volta à padaria. Uma vez lá, deixou tudo em um canto, botou roupas limpas e tentou se preparar para o dia seguinte. Não foi fácil, mas os deveres da vida mundana nunca sumiam, por mais insignificantes que parecessem as vezes.

***

Não havia um único grama de vitória em suas mãos. Nem mesmo o conhecimento de que um território podia jogar as pessoas em ilusões era algo inédito. A única parte nova era a intensidade de tais visões. Mesmo cansado, Nicolas não conseguia parar de andar de um lado a outro na casa.

Passava pela cozinha quando se iniciou o pensamento de que era um fraco. Um pedaço inútil de bosta que não conseguia diferenciar sonhos de realidade. Deveria ser o líder daquele grupo, encabeçar qualquer desafio e surgir com uma solução, porém o que aconteceu lá? Hesitou em sua determinação, em seu objetivo. Bárbara foi mais rápida que ele, e ainda assim insuficiente.

Estava de volta no escritório quando a cena dos mortos invadiu sua mente. Escorou as costas na parede e levou as mãos ao rosto, arranhando a pele e sentindo algo duro na bochecha direita. Era uma sensação boa, mas forçou-se a afastar os dedos do rosto, não adiantaria nada ficar abrindo ferimentos. Focou no misterioso grupo que enfrentaram. Não se arrependia de tê-los matado, faria tudo de novo. Se lamentava mesmo de não ter ordenado a fuga quando percebeu que as ilusões eram fortes. E, para sua surpresa, foram jogados de uma direto em outra. Os predadores estavam evoluindo cada vez mais, ao passo que ele ficava para trás.

O abalo do dia levaria suas atividades a um hiato. Quanto tempo duraria? Quantos voltariam a atuar? Não tinha como dizer, mas esperava que fossem todos. Teria que pensar em uma forma de forçá-los se fosse necessário, não tinha tempo para se preocupar com sentimentos.

Moveu-se da parede e voltou a andar. Entrou no banheiro, abriu a torneira e lavou o rosto, tentando tirar alguma sujeira que estava incomodando-o. Foi um erro entrar em um território novo sem qualquer tipo de preparação. Começaria a explorar novos alvos sozinho antes de levar o restante do grupo, eles eram capazes, mas algumas coisas apenas poderiam ser feitas se estivesse sozinho. Sim, era um bom plano e que dependia somente de si. Levou os olhos ao espelho e viu o rosto pálido e molhado, as gotas escorrendo pela pele imberbe até caírem na pia, olheiras profundas revelando noites e mais noites mal dormidas, e os olhos tomados de determinação.

Fitou as mãos e notou a fonte do incômodo no rosto, uma pequeníssima placa orgânica, não maior que seu dígito. Era resistente, ficando inteira após um aperto dos dedos, tinha uma forma quadrada e arredondada nas pontas, além de possuir uma coloração cinza escuro. Não era simples sujeira, e sim algo que traria mais desconforto e o atrasaria por alguns dias. Seria melhor ir ao farol antes que a situação piorasse.

Precisava manter a calma. Não falharia, nunca mais.

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