Predadores: A Obsessão - Capítulo 15

Bárbara vai ao trabalho após o trauma do território anterior

No capítulo anterior, o grupo se separou após voltar ao farol. Todos estavam exaustos e traumatizados pelo evento. Até mesmo Nicolas, sempre frio, exibiu frustração diante do fracasso que presenciou.

Agora, depois de tudo que passou, Bárbara retoma sua rotina de acordar e ir ao trabalho, afinal, boletos não se pagam sozinhos. O que ela não esperava é que seu dia fosse um tanto peculiar.

Desenho monocromático. O desenho mostra uma calçada vista do terceiro andar. Na calçada há um grupo de duas mulheres e um homem com camisetas brancas. Dois deles, o homem e uma das mulheres, seguram panfletos, enquanto a última pessoa está entregando um panfleto para alguém de passagem. No topo direito da imagem há o número quinze para indicar o capítulo.

Voltar ao trabalho era uma sensação estranha, ao mesmo tempo que mostrava a continuidade de tudo, era como se a vida fosse obrigada a parar durante aquelas oito horas e meia do expediente. Bárbara não sabia se agradecia ou amaldiçoava este intervalo de tempo. Por um lado, conseguia focar em outra coisa, por outro, que lugarzinho merda para se estar.

Não bastasse os colegas de bancada a olharem torto, a fofoca viajou pela empresa e agora todos olhavam-na com uma espécie de medo e repulsa, como se fossem levar um soco apenas por estarem próximos. Se era evitada antes por conta de sua carranca, agora nem a olhavam na cara, podia apenas sentir o julgamento de cada um por suas costas.

Era meio da tarde quando se levantou da mesa e foi até a copa para uma xícara de café. Os dois funcionários que estavam conversando por lá saíram sem muita discrição enquanto Bárbara se servia. O líquido fumegante inundou sua xícara e ela se afastou das térmicas, ficando próxima a uma janela com visão para a calçada na rua oposta. Mais importante que isso, ali era o único lugar na copa que era pego por câmeras, então para garantir que nenhum desencontro ocorresse e outra acusação injusta a fizesse ser demitida, Bárbara evitava ficar onde não pudesse ser gravada.

Enquanto bebericava o café amargo, notou a aproximação de Igor, o único a ainda manter contato regular com ela, talvez por saber que a fúria da colega era justificada, ou talvez por pena. Difícil saber. O homem vestia uma camisa azul-escuro, calças jeans cinza claro e um par de sapatos, uma bela diferença do seu estilo “vou vestir a primeira coisa que achar no armário” da adolescência. Ele adentrou a copa, passou pela térmica de café e ficou em frente à outra, de chá.

— Como tu consegue ficar acordado só com isso? — perguntou Bárbara. Não era chegada em conversa fiada, mas o silêncio em suas pausas do café trazia memórias do território à tona.

— Não muito bem. — Igor se serviu. — Só que eu já tomo muito café quando chego na empresa, aí se eu tomar mais dá uma dor de barriga desgraçada.

— Faz sentido.

— Sobre Eder… — Ele avizinhou-se, os olhos castanhos que Bárbara achava um charme traziam consigo algumas olheiras e pareciam mais foscos.

— Não quero saber — respondeu, ríspida.

Igor suspirou.

— Talvez se tu tentasse…

Bárbara virou o rosto enquanto tomava de uma vez o resto do café. Focou-se na rua e enxergou três pessoas com batas brancas, completando o visual com calças azul-marinho e calçados pretos. Havia algo estampado na roupa deles, algo que Bárbara lembrava-se de ver ao redor de muito sangue.

— Tu já viu aquilo ali antes? — perguntou, interrompendo seja lá o que Igor estivesse falando.

O homem se aproximou e olhou pela janela, fazendo uma careta em seguida.

— Já. Na minha rua surgiram uns malucos desse culto. É picaretagem das brabas igual a todos os outros.

Ficou em silêncio por alguns segundos, observando o trio distribuindo folhetos para os poucos transeuntes que passavam naquele horário.

— Vou lá.

— O quê?! Estamos no meio do trabalho.

Saiu da copa com a xícara vazia nas mãos e rumou para fora do prédio, descendo pelas escadas de emergência até o térreo. Tinha consciência de que poderia receber uma advertência, mas não perderia a oportunidade de conversar com aquele grupo. Talvez tivessem respostas. Aproveitou que a rua estava calma e atravessou o asfalto a passos largos, por fim, aproximou-se do trio composto de duas mulheres e um homem.

Conseguiu ver melhor a estampa naquelas batas. Era uma balança romana segurada por um homem, sem venda nos olhos e uma expressão dura. Os três a olharam com certa expectativa.

— Boa tarde — disse Bárbara. — Eu vi vocês lá da empresa e fiquei curiosa. São tipo uma religião?

Igor chegou em seguida e ficou ao seu lado enquanto a mulher no centro do grupo dava um passo à frente. Ela tinha cabelo preto e cacheado, cortado na altura do pescoço, além disso, sustentava um olhar tranquilo e abriu um sorriso para Bárbara após a pergunta.

— Não somos uma religião, e sim um culto. Diferente de outros, veneramos não um deus ou deuses que se colocam acima da humanidade, mas um ideal sustentado por nós mesmos: a justiça.

— Justiça no sentido do sistema judiciário? — Alertas acendiam na cabeça de Bárbara, mas teve que ignorá-los. Se fosse capaz de descobrir algo a partir dessas pessoas, valeria a pena.

— Não, essa é uma justiça fraca e arbitrária. Valorizamos a verdadeira justiça, a moral da humanidade, dar e receber, ajudar e ser ajudado, machucar e ser machucado. Bem e mal não podem ficar na mão de um deus, caso contrário a humanidade nunca vai aprender com seus erros. — A mulher falava sem pressa, satisfazendo-se com cada palavra. — Tu pode aprender mais sobre isso indo a uma de nossas reuniões.

Igor fez uma carranca que rivalizava com as de Bárbara em seus piores momentos. Mesmo assim, manteve-se em silêncio.

— Onde e quando são feitas essas reuniões? — perguntou Bárbara.

— Temos cinco locais em Porto Alegre, e vários outros na região metropolitana. Pode me passar o seu Whats para conversarmos e vermos o melhor lugar para ti.

— Não é melhor me passar o seu? Vocês devem ter que ir atrás de muita gente já.

— Claro, como ficar melhor para ti.

Bárbara pegou seu celular e gravou o contato da mulher, cujo nome descobrira ser Elisa. Em seguida recebeu um dos panfletos que o grupo entregava, ele era pequeno, com algumas mensagens exaltando a capacidade humana de se entregar à bondade e à justiça e viver sem um deus para guiar suas ações, pautando-as através do bem da comunidade. Havia um número de telefone e um site no verso do papel. Agradeceu a Elisa e se despediu do trio, caminhando de volta para o trabalho. Igor seguia mal-humorado ao seu lado.

— Parece que tu não gosta muito desse chá — comentou Bárbara.

Igor olhou para a xícara que ainda carregava e derramou o conteúdo em uma árvore pela qual passavam.

— Não acredito que está pensando em se envolver com aquela gente — disse ele com um muxoxo.

— Eu não quero, mas um conhecido meu se envolveu com esse culto e desapareceu. Não sei se foi culpa deles ou outra coisa, mas quero investigar.

— Ouvi dizer que muitas pessoas andam desaparecendo nos últimos meses… Não me surpreende que um culto assim tenha surgido. Essa gente se alimenta da nossa insegurança e do desejo de ter um futuro feliz. Eu diria para nem tentar ir atrás porque isso só vai complicar tua vida, mas… — Ele suspirou. — Me chame quando for em uma dessas reuniões.

Bárbara levantou uma sobrancelha.

— Me oferecendo ajuda agora?

— Olha, eu já lidei com essas merdas e não quero te ver se afundando e ficando bitolada.

— Não é uma reclamação, só estou um pouco surpresa. — Bárbara sorriu. — Pode deixar, te aviso sim.

Igor assentiu e fizeram sua caminhada de volta em silêncio, separando-se quando chegaram no andar em que trabalhavam. Bárbara voltou imediatamente para sua mesa, já que a pausa para o café tinha se estendido demais e queria evitar reclamações do gerente. No entanto, não foi dele que veio o comentário, e sim de Eder. Era a primeira fala que o infeliz se direcionava a ela desde o dia do assédio.

— O trabalho deve estar fácil para ficar saindo no meio do expediente.

Bárbara respirou fundo, limitou-se a tirar os olhos do monitor e encarar o homem. Ele sustentou o olhar, lançando um desafio no ar: retruque, leve a discussão adiante. Ela sabia muito bem que era uma armadilha, Eder tinha as costas quentes e teria vantagem em uma argumentação. Não era justo.

Talvez fosse ironia do destino que menos de cinco minutos atrás estivesse conversando com um culto que venerava justiça. Parecia algo cada vez mais escasso no mundo, ou talvez cada vez mais arbitrário. Rigidez e punições para uns, perdões e absolvição para outros. Entendeu um pouco mais das palavras de Elisa, a justiça e a moral não deviam ficar nas mãos de um deus, mas deixá-los na mão das pessoas também parecia a receita para o desastre. Um dilema sem muita saída.

Por fim, achou melhor segurar a língua e baixar os olhos para o monitor, tinha trabalho a fazer. Além disso, precisava investigar o culto, descobrir se acreditavam nas próprias palavras ou queriam apenas cativar os fiéis igual muitas outras religiões. Mais importante que isso, queria descobrir qual o relacionamento deles com os predadores, entender por que os cinco mortos vestiam roupas do culto.

Minutos depois, alguém se aproximou. Começou como uma presença assomando suas costas e, momentos depois, tornou-se uma mão do lado esquerdo de sua bancada. Ela seguiu a linha do braço com o olhar, por fim encontrando os olhos de Maurício.

— Oi — disse Bárbara, cansada de esperar que a primeira palavra viesse do homem.

— Boa tarde. — Ele tirou a mão da bancada. — Vamos conversar?

Pronto, a bronca por ter escapulido por cinco minutos no horário de trabalho vinha a jato. Quem dera as vagabundagens diárias de Eder ao celular merecessem também repreensão, mostraria, no mínimo, uma certa consistência.

Foram para a mesma sala de reuniões onde conversaram sobre o assédio de Eder e, repetindo o mesmo roteiro, Bárbara sentou-se de frente para o gerente. Maurício respirou fundo, porém nenhuma palavra deixou sua boca. Resolveu ela mesma arrancar o silêncio.

— Algum problema? Aconteceu alguma coisa?

— Tu é uma boa funcionária — disse ele.

Pronto, não era uma advertência, era demissão. O sangue gelou com a perspectiva, quantas contas tinha para pagar? Ainda lidava com as parcelas da Kawasaki, tinham as contas de aluguel, luz, condomínio e isso sem incluir a alimentação e higiene. Não duraria nem três meses direito com o dinheiro de reserva. Conseguiria arranjar um emprego qualquer antes de se afogar em boletos? Precisaria voltar para Santa Maria? Como fazia para pegar o seguro-desemprego?

— Sempre entregou tudo que pedimos, e em certos casos até adiantou as tarefas. — Maurício pôs as mãos entrelaçadas sobre a mesa. — Não acho certo como o caso com Eder foi conduzido.

Bárbara empertigou-se na cadeira, subitamente consciente de sua postura, do fato de estar curvando-se mais para frente, como se o gerente fosse demiti-la com um sussurro. Não aguentava mais.

— Vai me demitir mesmo por isso?

— O quê? Não…

— Então vai me demitir por quê?

— Bárbara, eu não vou te demitir.

Toda sua linha de pensamento sobre contas, novos empregos e mudanças desesperadas foi cortada de repente, jogando-a em uma maré de confusão. Ficou impossibilitada de seguir com qualquer questionamento.

— Pretendo fazer um movimento diferente — seguiu o gerente. — Não foi certo a forma que tratamos alguém dedicada como tu. Tirei os últimos dias para refletir sobre isso e também para observar Eder.

Bárbara assentiu.

— Vou demiti-lo e te dar um aumento.

Não conseguia mais acompanhar o desenrolar dos eventos. O mundo de repente avançara para 200 km/h enquanto ela recém engatava a primeira. De qualquer forma, estava feliz.

— Por que mudou de ideia só agora? — Ela deixou escapar. Será que tinha falado com agressividade demais? Será que estava forçando o lampejo de ética do chefe?

— Pessoas podem mudar, para melhor às vezes. Eu me arrependo do que fiz e quero consertar isso. Desculpe ter demorado. — Ele descruzou os dedos. — Só peço que não comente nada por enquanto, quero conversar com Eder ainda.

— Claro, fico quieta sim.

A conversa encerrou e logo ela estava de volta à sua cadeira, olhando para um monitor que exibia o programa da contabilidade. Sentia-se animada, mas não conseguia direcionar essa energia para o trabalho. Enquanto estava naquele estado, ouviu o assediador sendo chamado.

O papo durou quase uma hora. Tempo demais para uma demissão. Nos primeiros minutos aguardou para ver o resultado, mas esperar se tornou impossível e seu foco voltou para o trabalho. Ao fim da conversa, Eder reapareceu com passos apressados e uma expressão dura no rosto, jogou seus pertences na mochila, desligou o computador e desapareceu do escritório.

Foi um dia estranho.

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