Predadores: A Obsessão - Capítulo 16

Fernando não consegue mais guardar segredo e conta sobre os predadores para Gabriel

No último capítulo, Bárbara retomou sua rotina no escritório, ainda que não houvesse nada de normal em seus pensamentos.

Agora, o foco muda para Fernando, que está sofrendo com os feitos do grupo no último território, ameaçando sua saúde e seu relacionamento.

Desenho monocromático. O desenho mostra o topo de um farol durante a noite, com a lua no canto superior direito da imagem. A luz está acesa, e graças a ela é possível ver a silhueta de um monstro no interior do farol. Ele possui cabeça humanoide e três pares de braços, com um tronco alongado que some da vista, sem mostrar como seriam as pernas da criatura. No lado direito há o número dezesseis para indicar o capítulo.

O primeiro jorro deixou sua garganta, espalhando o gosto de bile por toda a boca e trazendo consigo a acidez do estômago. A comida parcialmente digerida sujou a porcelana do vaso e a visão serviu apenas para deixar Fernando mais enjoado. Antes que conseguisse se recuperar, outro jato veio, trazendo mais da mesma sensação e espalhando queimação pela garganta. O ciclo se repetiu algumas vezes e o homem enfim reuniu saliva na boca e cuspiu no vaso, falhando em livrar-se do gosto horrível.

— O que aconteceu? — perguntou Gabriel.

Fernando olhou para o namorado, não tinha visto nem ouvido ele entrar no banheiro, mas era óbvio que apareceria. A vinda da pergunta também era uma certeza, e quase contou a verdade, quase contou que os pesadelos pioravam a cada noite, quase contou que toda vez que dormia sonhava com o território, sonhava com as pessoas mortas, com a cena vinda direto de um filme de terror, quase contou que temia por sua vida, pela vida dos outros no grupo, quase contou que não conseguia carregar a responsabilidade sozinho. Mas não falou a verdade, em vez disso, a mentira saiu de seus lábios com tanta naturalidade que o espantou.

— Está tudo bem, devo ter comido algo estranho só.

Gabriel franziu o cenho.

— Não está. E não me venha com isso de intoxicação alimentar, tu tem andado estranho há tempos! Nem olha para mim direito nos finais de semana e fica só sussurrando pela casa.

— É que… as coisas na padaria não estão fáceis. Digo, estou começando a equilibrar as contas, mas perdi alguns clientes e o fornecedor não colabora.

— Então peça ajuda, fale com sua família. Ou deixa comigo que eu converso com eles.

— Não! — gritou o padeiro.

Silêncio tomou o banheiro. Um intervalo desconfortável em que Fernando sentia a cabeça de Gabriel trabalhar em alguma resposta, alguma forma de tirá-los daquela situação. Enquanto isso, Fernando apenas encarava o namorado, ainda sentindo o gosto de vômito na boca e o cheiro ruim no vaso.

— Tudo bem, como quiser. — Sua voz estava embargada e ele deixou os braços penderem ao lado do corpo, os ombros baixando. — Quer se martirizar e ficar sofrendo até não aguentar mais, faça isso mesmo.

E então deixou o cômodo. O coração de Fernando se acelerou, sabia que estava deteriorando a relação dos dois, mas não imaginou que tinha feito tanto estrago assim. Com medo do que poderia acontecer se não falasse nada, moveu-se às pressas e segurou o ombro de Gabriel, virando-o para si.

— Não se preocupe, vai ficar tudo bem. — Outra mentira, mais uma na pilha que andava contando a Gabriel e a si mesmo.

— Como eu não vou me preocupar? É claro para qualquer um que olhe para tua cara que não vai ficar bem. Cada dia tu parece mais acabado, e não fala nada para mim! O que eu devo pensar disso? O problema é mesmo a padaria?

Fernando abriu a boca para responder, outra mentira prestes a ser disparada pelos lábios e língua, mas ele hesitou e manteve-se em silêncio.

— Por que não diz a verdade? — perguntou Gabriel.

— Porque eu não posso dizer. Eu não consigo dizer a verdade! — A voz de Fernando saiu baixa, cada palavra arrastando-se pela garganta.

— Tente.

— Eu não…

— Tente!

Fernando suspirou e baixou a cabeça. Qual das duas situações era pior? Continuar na enganação e arriscar tudo que lhe sobrava de felicidade, ou dizer a verdade e ter a chance de ser desacreditado no momento em que abria seu coração? Fitou os olhos azuis-claros de Gabriel e pensou no que faria se o namorado lhe aparecesse com a história mais sem pé nem cabeça que existe. Fernando acreditaria, é claro, a relação entre eles não era algo para se desmanchar tão fácil. Se era o caso, então por que temia? Na sua frente estava uma pessoa que abriu mão de uma casa confortável para viverem juntos, que fazia horas extras para cobrir os gastos que tinham sem reclamar, que sempre o ajudou. Não havia nada a temer.

Quando falou, contando sobre o dia em que levou o tiro, quase se engasgou com as lembranças, mas continuou. E uma vez que estava contando, não conseguiu parar mais. Era como o ar dentro de um balão, pronto para sair e esvaziá-lo do tormento que o inchava desde muito tempo atrás. Era arriscado, Fernando sabia disso melhor do que ninguém, já que ele mesmo teve dificuldade de acreditar em tudo que viu, ouviu e sentiu na primeira vez. Porém, a oportunidade de dividir aquilo com alguém que o apoiaria venceu esse medo. Achava egoísta de sua parte se sentir assim, mas não pôde evitar. Quando deu por conta, narrava os eventos com a voz chorosa e os olhos cheios de lágrimas.

Gabriel ficou em silêncio o tempo todo, mas prestou atenção em cada palavra despejada em meio a uma cachoeira de sentimentos. Só foi falar quando o outro parou a história e o encarou com olhos hesitantes.

— Eu acredito em ti.

E abraçou Fernando, que deixou o aperto na garganta escapar e as lágrimas fluírem. O tempo se tornou algo dispensável. Fernando não sabia dizer o que aconteceu, quando deu por si, estava sentado no sofá com um copo cheio de água em mãos e com o namorado ao lado, mantendo a mão no seu ombro.

— Eu não acho que esteja mentindo — começou Gabriel. — É só que… tu sabe que isso é difícil de provar, né? Tem certeza de que não está cansado a ponto de alucinar?

— Eu posso mostrar.

Gabriel abriu a boca e fechou-a em seguida. Acenou para que Fernando continuasse. O padeiro entregou o copo vazio e levantou-se. Fechou os olhos enquanto imaginava o farol. Suas pernas tremeram, mesmo sabendo que aquele era um local seguro, não pode evitar o pânico de se manifestar conforme as visões da última incursão brotavam na cabeça. Porém, era sua chance de conseguir ajuda, e encararia o medo apenas por alguns segundos.

Abriu os olhos e encontrou-se no promontório, do lado de fora, era noite no território assim como no mundo real. A atenção foi atraída para o topo do farol, para a luz que nunca era ligada, mas que naquele momento brilhava. Ela girava, focando sua iluminação em um ponto de cada vez. Na primeira volta, destacou uma silhueta humana que parecia estar apoiada nos antebraços contra o vidro. Na segunda volta, a figura apoiava a cabeça nas mãos. Na terceira, Fernando deu um passo em direção à entrada do farol. Alguém do grupo deveria estar com problemas, talvez pudesse ajudar. Sentiu os pelos da nuca arrepiarem, uma repulsa crescente no seu estômago, a vontade de ter a mochila de entregas consigo e hesitou em dar um segundo passo. Na volta seguinte, a silhueta deixou de ser humana. Tinha um corpo alongado e largo, cobrindo todo o vidro em altura e, ao redor do tronco, se era mesmo isso, inúmeros braços saíam, apoiando as mãos contra o vidro.

Sentiu-se novamente no metrô, na sala do originador. Fechou os olhos, vendo por um momento o estrago causado naquele território das ilusões, o sangue pelo chão, os corpos mortos. Desejou voltar para casa.

Deparou-se com Gabriel em pé, olhando-o espantado.

— Era real mesmo… Eu… Como? Por quê?

— Falamos em um segundo. — Fernando levantou um dedo, arrancou o celular do bolso e abriu no grupo com Nicolas. Foi difícil digitar a mensagem, os dedos tremiam e foi impossível acertar todas as letras.


Fernando

Acavei de ver um ptedador no farol


Passou um minuto e nenhuma resposta veio. O padeiro quase deu um pulo quando a mão de Gabriel apertou seu ombro.

— Tudo bem? O que aconteceu?

— Eu vi um predador. Deveria ser nosso local seguro! — Fernando olhou a tela do celular por um segundo. — Se alguém for lá, eu não sei o que vai acontecer.

— Calma. Senta no sofá e respira fundo.

— Eu não posso…

— Senta.

Obedeceu a contragosto, a perna subia e descia em movimentos rápidos. Gabriel foi para a cozinha, deixando-o com o celular e a expectativa. Nicolas sempre lia rápido as mensagens, será que já fora pego? E os demais? E se já estivessem todos mortos?!

O aplicativo sinalizou uma nova mensagem.


Nicolas

Acabei de voltar do farol, sem sinal de predador.


Fernando

Mas eu vi


Nicolas

Passarei a noite lá, reportarei qualquer problema.


Gabriel voltou com o copo cheio de água e lhe alcançou. Fernando pegou, mas não fez menção de beber.

— Recebeu resposta? — perguntou o namorado.

— Sim, Nicolas disse que não tem nada lá.

— Será que não foi sua cabeça? Estresse talvez?

— Eu sei o que vi!

— Tudo bem. — Gabriel sentou-se ao lado dele. — Por que não bebe a água e daí me conta o que viu?

— Para que eu vou beber água?

— Para se acalmar.

Fernando bufou e tomou tudo de uma vez só. Não teve efeito. Assim que engoliu, disparou os detalhes do farol em Gabriel, que ouviu tudo em silêncio e com uma expressão séria.

— Então tu viu tudo isso, mas Nicolas não? — perguntou o namorado, ao fim da explicação.

— Não, ele disse que tá tudo normal.

— E se estiver mesmo tudo normal?

— E se não estiver?! Qualquer hora alguém pode ir lá e morrer!

Gabriel respirou fundo.

— Como é esse Nicolas? Não de aparência, mas de personalidade.

— O que isso importa? — Fernando balançou as mãos, o copo escorregou um pouco nos dedos.

— Tu já vai entender.

Fernando bufou, mas respondeu:

— Quieto, sem expressão, estranhamente obcecado com os predadores e eliminar eles.

— E tu acha que ele avisaria se houvesse algum problema?

— Sim, capaz até de nos ligar nessa hora da noite.

— Então tu avisou, e Nicolas é competente. Por que a preocupação?

— E se ele não notar algo importante? Ele não é perfeito!

— Concordo, mas cara, tu tá uma pilha de nervos e não dorme bem há alguns dias que eu sei. — Gabriel afagou o ombro de Fernando com a mão. — A última coisa que precisa é mais preocupação, deixa isso na mão dos outros por enquanto. Caso contrário vai ser o mesmo problema da padaria, mais um peso para carregar sozinho nas costas.

Fernando ficou em silêncio, pensando um pouco sobre as palavras do namorado. Ele tinha razão em partes, mas não entendia, não sabia o que era sentir aquele arrepio. Não conhecia um território.

Gabriel segurou sua mão e disse:

— E já que não vai dormir hoje, que tal me contar, nos mínimos detalhes dessa vez, sobre esses predadores, porque mesmo se tu não quiser, eu vou te ajudar. Vamos pensar em uma forma de ajustar tua rotina, eu posso assumir algumas tarefas, talvez as negociações com os fornecedores. Qualquer coisa para facilitar tua vida.

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