- Guilherme Lopes Lacerda
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- Predadores: A Obsessão - Capítulo 25
Predadores: A Obsessão - Capítulo 25
A segunda parte do passado de Nicolas
No vigésimo quinto capítulo, retomamos o passado de Nicolas. Continuando do momento em que ele se enforcou e acordou no meio de uma estranha rua com casas iguais e sem sinal de vida.

Alguns meses antes...
Antes mesmo de abrir os olhos, escancarou a boca e puxou para seus pulmões todo o ar que lhe faltava. Enxergou o céu noturno e virou a cabeça para o lado. Estava na rua. Alguém o carregara? Por quê?
Sentou-se, notando um peso extra em seu pescoço. Levou a mão até ele e encontrou lá a corda que usara. Os dedos tatearam os sulcos na pele e carne, lançando uma fisgada de dor. Seguiu com eles pela corda, passando pelo nó e chegando a um fim abrupto. Alguém a cortara, alguém o salvara momentos antes de morrer. Se levantou trôpego e olhou os arredores. Estava no meio do asfalto, em uma rua que não era a sua, tampouco um lugar que conhecia.
Os postes de luz eram diferentes entre si. Alguns elevavam-se muitos metros e suas luzes quase não iluminavam o chão. Outros estavam com a lâmpada e seu suporte virados para cima, em uma tentativa inútil de clarear o céu noturno. E uma pequena quantidade estava torcida como massinhas de modelar, dando voltas e mais voltas, assemelhando-se a molas, mas no fim iluminavam o caminho melhor que os demais.
Caminhou até a calçada, feita de pedra e cheia de limo. Olhou adiante, mas não viu o fim da rua, nem ao menos uma interseção com outra. Enxergou apenas uma fileira de casas dispostas em cada lado. O mesmo telhado de brasilit, a mesma fachada branca, a mesma grade de metal preta em volta da casa. Também possuíam o mesmo número: 1147. Atrás de si o cenário era igual.
Nicolas esfregou os olhos com os indicadores. Tentou desesperadamente lembrar de alguma rua ou lugar que tivesse casas tão parecidas. No Brasil, para serem todas tão iguais, era em condomínios, mas então não teriam grades e nem o mesmo número. O que mais poderia ser? Um set de filmagem, talvez? Não, estava complexo demais para ser isso. Um sonho? Apenas a realidade? Já não mais sabia o que responder. Os punhos abriam e fechavam com as perguntas ressoando na cabeça.
Aproximou-se de uma casa. Queria evitar interações, mas sua única escolha era perguntar a um morador dali. Deteve-se ao ter uma visão melhor da grade, sentindo o coração palpitar mais forte e suor tomando suas mãos. Onde estava a entrada? Foi para a parte de trás da residência, apenas para notar que estava fechada também.
Além das moradias havia apenas um horizonte escuro, com pontos luminosos distantes. Uma cidade? Arriscou passos naquela direção, porém chocou-se com algo e recuou, massageando o nariz dolorido. Estendeu as mãos à frente e sentiu a textura familiar de pedra fria e porosa. O cenário desapareceu e Nicolas se deparou com um muro cinza de mais de dez metros, se estendendo para a esquerda e direita sem um final visível. Voltou dois passos.
O horizonte reapareceu e ocultou o muro. Não era possível, não havia nem razão para existir algo assim. Nicolas levou as mãos ao rosto, sendo tomado por uma súbita dor de cabeça. Desviou o olhar para o chão, não queria mais ver seja lá o que fosse aquilo. Olhou o volume na lateral da calça e lembrou de seu próprio celular. Pegou o aparelho com dedos trêmulos e ligou a tela. Estava funcional. O relógio mostrava 03h47 e a bateria estava quase cheia. O único problema era o sinal inexistente. Ligou uma vez para um ex-colega de trabalho e nem chegou a discar. Tentou outros contatos, arriscou o 190, todos com o mesmo resultado. Fechou as duas mãos sobre o celular e baixou a cabeça, encostando a testa no aparelho. O que fazer? Aonde ir?
Após algum tempo parado, começou a caminhar. Passou de casa em casa pedindo por ajuda, mas as luzes internas nunca se acendiam e ninguém lhe respondia. Acelerou o passo, começou a berrar. Quando a garganta secou, procurou por pedras para jogar nas janelas e não encontrou nenhuma. O gramado ao redor era parelho e limpo, sem uma brita sequer.
Se aproximou da grade de uma casa e colocou as mãos nas barras. Eram lisas e sem nenhum apoio para os pés. No alto, arames cortantes serviam para desencorajar invasões. Funcionou nele.
Ouviu um estampido, e depois outro, então mais outro. Tiros. Não enxergou nada na direção dos sons e deu alguns passos, talvez fosse capaz de encontrar ajuda. Parou. Desde quando ia na direção do perigo? Ninguém decente andava armado por aí! Enquanto decidia o que fazer, mais disparos soaram e Nicolas tremeu, optando por se esconder atrás de uma casa e aguardar. Nenhum som cruzou a noite e não sabia dizer se preferia os tiros ao silêncio total.
Passaram-se vários minutos até que viu uma figura caminhando pela calçada. Era um homem. Possuía cabelos loiros compridos amarrados em um rabo de cavalo, usava uma camisa polo e calças jeans pretas. No lado esquerdo da cintura havia um coldre de arma, mas Nicolas não conseguiu descobrir qual era de tão longe. O homem possuía uma expressão séria, porém seus passos eram relaxados, como alguém caminhando pela praça no sábado à tarde. Já tinha visto aquele rosto em algum lugar.
O desespero venceu o bom senso e logo decidiu pedir ajuda. Saiu de trás da casa levantando as duas mãos. O loiro foi rápido para sacar a arma e apontá-la na direção de Nicolas, que se forçou a falar algo, mas produziu apenas sons sem nexo. A expressão do atirador suavizou-se em um sorriso enquanto ele devolvia o revólver ao coldre.
— Cara! Você quase me matou de susto — disse o homem.
Não foi o contrário? Nicolas só sentia agora o quanto o coração pulsava, reverberando por seu corpo todo.
O sujeito avizinhou-se. Era um pouco mais baixo e devia ostentar vinte e poucos anos. Possuía, acima da orelha, uma pequena flor branca que em nada combinava com ele.
— Pode baixar os braços agora.
Acatou a sugestão.
— Onde estamos? — A voz saiu pouco mais alta que um sussurro.
— Em território de caça.
Ele voltou a caminhar para a mesma direção de antes. Nicolas o seguiu, cuidando para ficar uns metros atrás.
— O que é um território de caça? Caça de animais? — Dessa vez conseguiu elevar a voz até o tom normal. — E como saímos daqui? Aliás, como eu vim parar aqui? Onde é aqui?
O loiro passou a caminhar de costas enquanto encarava Nicolas. O sorriso não deixava seu rosto.
— Vamos com calma. Não precisa me metralhar de perguntas.
Olhou para baixo, repentinamente envergonhado. Em outros tempos, tentaria descobrir tudo sozinho, mas não tinha mais vontade para isso.
— Todo mundo fica confuso na primeira vez — continuou. — Vamos começar do básico. Sou Rafael, e você?
— Nicolas.
— Fácil, né? Agora para as perguntas! É um território de caça de predadores, do tipo que te estraçalha como se fosse aqueles brinquedos baratos de um e noventa e nove. É complicado achar a saída, estou procurando-a nesse exato momento. Não sei como você veio parar aqui e eu seria um oráculo se soubesse.
— Faltou a última…
— Onde você acha que é aqui?
Pensou em tudo o que viu. As casas e rua seguiam uma estrutura familiar, do tipo que poderia ser visto em qualquer lugar, mas ao examinar o todo, nada se encaixava. Ruminou sobre a pergunta mais um momento, até que balançou negativamente a cabeça.
— Difícil, né? Eu tenho pelo menos alguns meses a mais de experiência que você e o que eu sei… — Seu semblante se fechou, o sorriso sumiu do rosto e suas sobrancelhas se arquearam — é que nada sei. — Ele riu e se virou para a frente, deixando Nicolas com a boca meio aberta.
— Você não respondeu nada direito.
— Eu respondi da melhor forma que consigo. — Rafael parou de caminhar e estendeu a mão direita na direção de Nicolas em um claro sinal de “pare”. — Você vai ver por si mesmo agora.
O sujeito tirou o revólver do coldre e olhou em volta. Nicolas estava prestes a perguntar o que estava errado quando sentiu uma comichão no pescoço, a corda o incomodava pela primeira vez. Observou os arredores e viu o primeiro sinal de vida nas casas. Luzes começaram a acender, as portas abriram e pessoas saíram delas. Todas eram pequenas e não demorou a notar que eram crianças. O coração acelerou ao perceber que todas deixavam as casas ao mesmo tempo e, por algum motivo, sentiu uma queimação na garganta como se recém tivesse vomitado. Rafael correu sem dar explicações e, seguindo seus instintos, Nicolas foi em seu encalço enquanto tentava controlar o nojo de ver aquelas crianças.
Os infantes saíam aos montes das construções, indo até a grade, botando os bracinhos para fora e balançando-os. Alguns agarravam as barras e tentavam torcê-las ou pulá-las.
— O que são essas crianças? — perguntou Nicolas, quase sem ar. Nem tinham passado por cinco casas, mas o tempo de sedentarismo pesava no corpo.
— Se acha que são crianças, vai lá dar um abraço nelas. — Rafael balançou a cabeça na direção de uma residência próxima. — Só tenha certeza de verificar o que está fazendo.
Nicolas olhou pela primeira vez para elas, não para a silhueta, mas para o corpo todo, a começar pela cabeça. Ao redor do rosto havia finas linhas vermelhas, entrando e saindo da pele. Parecia apenas crueldade até ver que algumas tinham as costuras mal feitas, deixando a face meio solta como se fossem máscaras de couro. As feições não combinavam com o corpo, tinham traços mais adultos e, apesar de tudo, as expressões eram tão mutáveis e vivas quanto poderiam ser. Mesmo no silêncio em que estavam, era possível entender o que sentiam: medo, dor, raiva.
Nicolas parou de correr.
— O que é isso? São… são pessoas?
Rafael parou e se virou para ele. Não sorria mais.
— Eu já te disse, são predadores.
— Não fale merda, elas estão… O que fizeram com elas?
Emitiram o primeiro som: um grito inumano, estridente e alto, mais parecendo um animal selvagem. Espremeram-se entre as grades, quebrando os ossos do corpo, deformando a si mesmas. A primeira a atravessar a barreira amassou uma parte do crânio e parecia ter deslocado um braço, caindo no chão em seguida. Não demorou a se levantar, a cabeça lentamente voltando ao normal e seu braço tremelicando ao retomar sua posição. Sem aviso, correu na direção dos dois.
Rafael mirou o revólver e atirou. A criança caiu no chão com um buraco na testa, nenhum sangue saía. Os dedos escureceram e a cor espalhou-se pelo restante do corpo. Rachaduras formaram-se na pele, a carne vazou como uma lama roxa e fedida. Os ossos ficaram à mostra e então tudo começou a virar pó.
— Ainda acha que são humanos? Pode ficar aqui e morrer ou pode vir comigo e viver. O que quer?
Mais daquelas coisas saíram, recolocando os ossos no lugar e correndo na direção deles. Nicolas não teve dúvidas.
— Viver.
— Então vai na frente, com essa barriguinha, vai precisar de vantagem.
Rafael riu e tirou do bolso um espelho com bordas metálicas. No que aquilo ajudaria? Não ousou perguntar, optando por tomar o máximo de distância possível daquelas coisas. A curiosidade, no entanto, venceu-o depois de alguns segundos. Virou e notou Rafael já alcançando-o, e logo atrás duas crianças socavam, chutavam e agarravam em um esforço de impedir que as outras passassem.
— O que você fez? — perguntou ao loiro, entre um arquejo e outro.
— Confundi eles um pouco.
Correram por mais um minuto, Nicolas achava que seu peito explodiria em breve. Juntar ar estava cada vez mais difícil e a náusea crescente não ajudava. A rua não parecia ter fim e, para piorar, luzes se acendiam à frente deles. Mais monstruosidades surgiriam em breve.
— Onde… estamos indo?
— Temos que procurar uma inconsistência, algo nesse lugar que não pertença ao território.
Nicolas parou de correr e se apoiou nos joelhos. Mesmo com o coração pulsando cada vez mais forte e um latejar na cabeça, lembrou de algo que parecia se encaixar.
— O muro.
Rafael estacou.
— Que muro?
— Atrás das casas não tem horizonte, é um muro pintado.
— Vamos tentar lá.
Os dois tomaram uma rota para o paredão. Algumas crianças se aproximaram pela lateral e Rafael abateu-as com precisão e sem hesitar, mas não foi o suficiente, para cada uma derrubada, duas se aproximavam em seguida. O revólver logo ficou sem munição e uma criança se lançou nas pernas do atirador. Os dois foram ao chão e o homem deu coronhadas na cabeça da coisa até ela lhe soltar. Quando Nicolas o alcançou, já estava de pé e correndo. Chegaram e o loiro por pouco não repetiu o mesmo erro de Nicolas, parando antes graças a um aviso deste. Tocaram a estrutura fria e a pintura do horizonte desapareceu.
— É, deve ser aqui — disse Rafael.
— Deve?
— Não incomoda, temos que ser rápidos. Coloca as duas mãos e empurra com toda a força.
Mais esforço físico. Se fossem condições normais, seu corpo teria se rendido. Obedeceu às instruções, mas nada aconteceu. Rafael fez o mesmo.
— Não está funcionando! Não tá! — grunhiu Nicolas.
— Para onde quer ir?
— Para fora daqui, para casa!
— Então empurra essa merda!
Nicolas usou toda a força que tinha, mas nada aconteceu. Quando olhou para o lado, seu guia tinha desaparecido. Olhou para trás, a legião de crianças estava prestes a alcançá-lo. Gritou e empurrou, e mesmo com nenhuma memória querida ou agradável do seu passado, queria voltar logo para casa. Então suas mãos afundaram na pedra e ele atravessou o muro.
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