Predadores: A Obsessão - Capítulo 29

Dominique e Nicolas investigam um território abandonado

No último capítulo, Dominique fugiu de sua casa e família para viver no território do farol.

Agora, Nicolas descobre que a idosa está morando no farol, e a convida para auxiliá-lo na tarefa de investigar o primeiro território que ele destruiu.

Desenho monocromático. O desenho mostra Nicolas, um homem com terno e sapatos pretos, usando uma corda de forca ao redor do pescoço. Na frente dele há uma esfera de luz por onde saem gavinhas escuras que se espalham pelos arredores e parecem fluir para Nicolas. No lado direito há o número vinte e nove para indicar o capítulo.

Saiu do sono com o medo que somente os pesadelos sabem despertar. Coçou os olhos e sentou-se devagar, enxergando Nicolas poucos metros ao seu lado. O líder percebeu o olhar e perguntou:

— O que está fazendo?

Levou alguns segundos para raciocinar onde estavam, como foi parar lá e qual resposta dar.

— Decidi morar aqui.

Levantou-se e passou a dobrar a colcha e o lençol. Anos antes, este seria um movimento instintivo de tão fácil, mas via-se com um pouco de dificuldade. A memória muscular não estava mais presente. Engraçado o quanto alguns anos sem fazer nada faziam-na perder a prática de qualquer coisa. Mas, no fim, era como andar de bicicleta e, mesmo não sendo sua melhor dobra da vida, conseguiu ajeitar as roupas de cama.

— E você, o que está fazendo aqui? — perguntou Dominique, voltando seu olhar para Nicolas.

— Pensando — respondeu ele, observando o mar. — Este é um bom lugar para pensar.

— No que? — Aproximou-se do líder, tentando imaginar o que se passava na cabeça dele e falhando. Por mais que o admirasse, o homem era uma incógnita. Além disso, tirando o primeiro encontro deles quando Dominique fora levada até um território, não tiveram muito tempo sozinhos para que fosse capaz de penetrar a máscara dura que ele vestia com tanto afinco.

— Está satisfeita com o ritmo do grupo? — Nicolas olhou-a de soslaio.

— Acho que nunca parei para pensar nisso, mas diria que sim.

— E por quê?

— Eliminamos dois originadores, já. Você viu quanta gente tinha naquele hospital? Conseguimos salvar todas! — Dominique olhou para a própria mão, lembrando-se da empolgação na fuga. Quis mencionar isso também, mas era secundário frente ao verdadeiro objetivo do grupo. — Falhamos apenas com o amigo de Bárbara.

— Entendi. — Ele voltou a observar o mar. — Do meu ponto de vista, foram apenas dois originadores. Enquanto demoramos semanas para eliminar esses, os demais agem o tempo todo, vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. São incansáveis. Haverá muito mais casos como o de Igor, mortos antes que os libertemos.

— Não tem como ser tanto assim… Digo, eles estão lá, mas será que realmente agem sempre?

— Sabe quantas pessoas desaparecem por dia?

Dominique parou para pensar. Mesmo tendo o costume de assistir aos noticiários, matérias sobre desaparecimentos misteriosos eram poucas. De certa forma, tudo pareceria normal no mundo se ela não soubesse dos predadores. Comunicou isso para Nicolas.

— Demorei um tempo para levantar esse número. Não está em jornais ou comunicados governamentais, precisei entrar em grupos de redes sociais e procurar postagens de gente comunicando desaparecimentos impossíveis. Enfim, são cerca de trezentas por dia no país.

— Isso…

— Não parece tanto? — interrompeu Nicolas, virando-se para ela. — Mas isso são as que consegui descobrir e que foram relatadas. Quantas pessoas não reportam? Quantos raptos acontecem mundo afora? E mesmo que fossem “somente” trezentas, em um mês são nove mil, em um ano passa dos cem mil.

Dominique processou aquela informação por alguns segundos. Tinha noção do perigo dos predadores, mas Nicolas foi capaz de quantificar a ameaça. Pensando nos números de forma isolada, não fariam muita diferença, mas se juntassem os desaparecidos no mesmo lugar equivaleria à população de uma cidade média, talvez até mais.

— É impossível que só a gente saiba disso! — disse Dominique, franzindo o cenho. — Alguém no governo deve ter notado, ou alguém na imprensa!

— Os raptados são esquecidos, jogados de lado, até. Quando há matérias, dificilmente mencionam nomes. E mensurar nossa efetividade em números parece inútil. Quantas pessoas aquele território sequestrava por dia? Impossível dizer. Por isso não estou satisfeito.

— E se aumentássemos o grupo? Tem mais gente como nós.

— Eu já conversei com Fernando sobre isso uma vez. Os confiáveis são vocês, os outros ou não querem se comprometer, ou tem medo demais, ou agem conforme querem.

— Mas… se a ameaça é grande demais, não deveríamos nos unir? Certamente todos vão ver que precisamos ajudar uns aos outros!

Nicolas negou com a cabeça.

— Duvido muito.

— Temos que tentar! Eu posso ajudar todos os dias agora. Podemos rastrear essas pessoas e negociar.

— Dominique, algumas pessoas não conseguem enfrentar o impossível e se manterem positivas.

Aquelas palavras acenderam um alerta na idosa.

— Tem algo que eu preciso mostrar para vocês todos. Já que você está aqui, será a primeira a ver. — Nicolas estendeu a mão para ela.

— Para onde vamos?

— Para o primeiro território que destruí.

Dominique segurou a mão do homem. Por algum motivo, isso trouxe o pesadelo de volta aos seus pensamentos. Nele, tocar em alguém era o suficiente para ser capaz de modificá-lo. Conseguia fazer mesmo aquilo? Queria fazer? Não! Sua benção era para ajudá-la a derrotar predadores, não para mudar outras pessoas.

Quando deu por si, os dois estavam em uma rua vazia. Não havia nada nela além de uma estrada de asfalto iluminada pelo luar e campos de grama amarelada nas laterais. Não fosse suas pernas estarem funcionando, imaginaria se tratar de um lugar normal. Faltava a sensação de pressão e de tensão que surgia ao entrar em um território. Era semelhante ao farol, mas também diferente, como se faltasse algo.

— O território não deveria desaparecer depois de perder o originador? — perguntou Dominique.

— Desapareceu. — Nicolas olhou em volta. — E agora voltou.

O alerta se transformou em uma comichão nas pernas, junto com uma palpitação no peito.

— Quando voltou? — Dominique seguiu o olhar de Nicolas, mas não encontrou nada que chamasse a atenção.

— Cerca de duas semanas atrás, depois de ser destruído três meses antes. — Ele começou a caminhar pela estrada de asfalto. — No entanto, é só o território, sem sinal algum de predadores.

— Foi o seu primeiro, certo? — Dominique seguiu-o, caminhando ao seu lado. — Talvez tenha feito algo errado.

— Duvido muito, tive ajuda.

A conversa morreu por alguns segundos. Dominique ponderava uma pergunta enquanto tentava já adivinhar a resposta. Não parecia haver nenhum olhar de tristeza em Nicolas, e ela também duvidava que houvesse caso algo ruim tivesse acontecido ao ajudante dele.

— E o que aconteceu a essa pessoa? — perguntou.

— Descobrimos ter objetivos diferentes e nos separamos. Ainda mantemos contato, ele é meu fornecedor das pílulas. — Nicolas apontou para a frente. — Consegue ver aquilo?

Dominique olhou adiante e enxergou uma estranha luz. Ela não era visível antes mesmo estando em terreno plano. Estava há mais ou menos um metro do chão e brilhava em um tom amarelo-claro.

Se aproximar não fez muita diferença na impressão que Dominique tinha. Continuava sendo uma fonte misteriosa de iluminação sem qualquer detalhe. A idosa estendeu a mão para o brilho, tocando a energia que fluía dele. Era isso mesmo? Energia? Aliás, era ao menos possível tocar em algo como a luz? Antes que pudesse fazer perguntas, sua mente foi arrastada para outro lugar, que também era o mesmo lugar, no passado.

Enxergou uma sala de estar repleta de correntes tensionadas, emaranhando-se umas nas outras sem lógica alguma, uma teia de aranha imprecisa e sem planejamento. As correntes iam de um lado a outro, do chão para o teto, estendendo na horizontal, vertical e diagonal, de forma que era impossível dar um passo sequer no cômodo sem esbarrar no metal. Alguns metros à sua frente, próximo a uma porta aberta que dava acesso ao exterior, estava Nicolas. Sua expressão demonstrava um pouco de medo e cansaço, o cabelo arrumado pelo gel estava desgrenhado e pela primeira vez Dominique o via sem terno, em vez disso usava uma calça gasta de moletom e uma camiseta toda rasgada. A idosa imaginou que ele olhava em sua direção, até que ouviu o retinir de metal à sua esquerda. A poucos centímetros de si, estava uma criança com o corpo inteiro restrito pelas correntes, dando voltas e voltas até que somente a cabeça estivesse visível. Dezenas de cadeados mantinham as correntes bem apertadas. Sentiu pena do menino e se agachou, vendo que ele não possuía um corpo humano. As correntes que pareciam prendê-lo na verdade eram sua carne, protuberando-se para fora da parte humana. Dominique deu um passo para trás e, com a velocidade que já estava acostumada a ver, uma corda surgiu, enrolando-se no pescoço do predador e enforcando-o.

Afastou a mão da luz e recuou um passo. Não tinha notado durante a visão, mas um zunido constante ressoava em sua cabeça, também suava e ouvia ainda o tilintar das correntes e a respiração entrecortada do predador. Nicolas a observava com a mesma expressão de sempre e não disse uma palavra até Dominique fazer sua pergunta.

— Você enforcou uma criança?

— Um predador parecendo uma criança, para ser mais exato — respondeu ele, com naturalidade.

— Ainda assim…

— Eles tomam diversas formas, crianças, adultos, idosos. O mal é o mal e eliminá-lo na aparência que se apresenta é o necessário. Além do mais, era um originador, e acabei de te falar do estrago que estão fazendo. Ao não agir, eu condenaria muitos outros.

Dominique não respondeu. Mesmo sabendo o dano causado por predadores, algo na cena a revoltava. Seria ela capaz de fazer o mesmo? E se fosse, conseguiria se justificar igual Nicolas?

— Não há outra solução? — perguntou ela. — Vencemos o predador do hospital sem matá-lo.

— Talvez tenha, mas quantas vidas vamos perder até encontrá-la? Estaria disposta a dizer para as vítimas esperarem enquanto você busca uma saída melhor? — Dominique não respondeu.

— Por que você não mataria alguém que se finge de criança?

— Porque é errado.

— Noções de certo e errado não valem aqui. Se hesitarmos demais, perdemos. — Nicolas direcionou o olhar para a luz. — Eu sinto que esse originador vai voltar.

A cabeça dela ainda estava no último assunto, e mencionar o retorno do originador fez tudo se embaralhar.

— Tem alguma forma de impedir?

— É isso que quero descobrir, e para isso que preciso de sua ajuda. A luz revela o passado do originador, mas ficar tempo demais é perigoso. Quero que me puxe caso note que não aguentarei.

Era um pedido estranho, não pelo fato de estarem em uma rua asfaltada sem nada por perto, olhando para uma luz que vinha de lugar nenhum e que tinha a capacidade de transmitir memórias de uma criatura morta há mais de três meses, nem pelo fato de Nicolas querer arrancar o máximo de memórias dessa criatura, Dominique já tinha aceitado essas coisas como um fato da realidade. Estranho mesmo eram os termos usados. Sempre que eram reunidos, era com o objetivo de ajudar a suceder em algo, nunca vira Nicolas cogitar precisar de ajuda em caso de fracasso. Era uma faceta nova dele, só ela conhecia, mais ninguém.

Assentiu com empolgação, e o líder aproximou as mãos da luz sem hesitar. O brilho oscilou e mudou de forma. Se antes era como uma esfera, espalhando a iluminação igualmente em todas as direções, passou a ser galhos espinhosos, cobrindo os arredores de Nicolas. A idosa pensou em puxá-lo dali, mas a mudança repentina não pareceu incomodá-lo, tampouco feri-lo.

Minutos se passaram e os sinais de problema surgiam um após o outro. Primeiro com o suor que escorria da testa de Nicolas e logo empapou a roupa nas costas e axilas. A pele da mão e do rosto descamava, revelando por baixo uma camada reluzente em preto e branco. Os espinhos o envolviam cada vez mais e, se deixasse aquilo continuar, talvez Dominique não fosse capaz de trazê-lo de volta.

Esticou a mão para puxá-lo, mas parou ao sentir alguém perto deles e virou-se rapidamente, erguendo os punhos em posição de combate. Deparou-se com um ser sem forma, ou melhor, sem forma fixa. Em um instante se parecia com uma mulher, em outro, com um homem, o cabelo mudava o tempo todo, a altura também, assim como cor de pele, olhos, rosto, roupas e tudo mais. Só manter o olhar naquela coisa exigia um certo esforço de Dominique. Sua cabeça rodopiava com as alterações. Decidiu fixar-se no chão próximo à criatura, mantê-la na visão periférica era bem mais fácil, mas dificultaria reações aos ataques do predador. Cerrou os punhos e flexionou os joelhos, pronta para qualquer coisa, menos para o que saiu da boca da criatura.

— Calma, Dominique. Vim aqui para impedir que Nicolas se mate com o que ele está fazendo.

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