- Guilherme Lopes Lacerda
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Predadores: A Obsessão - Capítulo 3
Fernando volta ao território do metrô com Nicolas
No último capítulo, Fernando sobreviveu ao ataque com a ajuda de Nicolas. Os dois homens percorreram o metrô até encontrarem uma saída. Ao botar o pé na plataforma, Fernando foi levado para sua casa, onde considerou tudo como um sonho até encontrar no seu celular o contato de Nicolas.
Perturbado pelo seu pesadelo ter se tornado realidade, ele entrou em contato com Nicolas para pedir explicações.

Passara as duas últimas semanas trocando mensagens com Nicolas, tentando assimilar tudo que tinha visto. Sabia que era real, mas isso só tornava a situação mais grave. Um lugar, uma dimensão melhor dizendo, onde seus residentes devoravam os humanos que apareciam. E para piorar, existiam pessoas, como ele próprio e Nicolas, capazes de entrar e sair dessa dimensão. Não queria nem pensar no fato de que possuíam poderes.
Viu uma mão passando em frente aos seus olhos, lhe tirando de seus pensamentos.
— Tudo bem aí? — perguntou Adair.
Sonhando acordado na frente dos clientes, que vergonha. Até parecia um amador, igual quando começou na carreira de vendedor muitos anos antes.
— Sim, sim, claro. — Olhou para o balcão. — Me desculpe, eu me distraí. O que tu pediu mesmo?
— Seis rosquinhas. De polvilho doce.
— Pra já.
Pegou uma sacola plástica transparente, botou as seis roscas dentro, entregou para o idoso e recebeu o pagamento. Em seguida olhou para o relógio na parede atrás de si. Mais algumas horas e sairia para fazer as entregas.
— Está bem mesmo?
Virou-se e viu Adair ainda ali, de sobrancelhas unidas e com um braço em cima do balcão.
— Estou bem sim, só cansado.
— Vai ter que contratar alguém para te ajudar guri, parece cada dia pior.
Fernando sorriu com o canto da boca e falou:
— Não vou te contratar, seu Adair.
— Esses jovens, cada dia mais exigentes. — Completou com uma risada.
— Obrigado pela preocupação, mas vou ficar bem.
— Eu sei que vai, tu é forte como um touro. — Olhou para o braço de Fernando. — Isso tudo é por causa dos pães?
— As máquinas fazem boa parte do trabalho, isso aqui é dos tempos de academia.
— Agora eu quero ir para a academia.
— Nunca é tarde para ficar monstro.
Adair sorriu, mas a expressão durou pouco.
— Fale o que quiser, sou metido mesmo, mas se tiver algum problema, pode contar comigo.
— Olha que eu vou cobrar, hein!
Se despediram e dessa vez o senhor saiu mesmo da loja. O resto do expediente na padaria foi tranquilo. O tempo se arrastava e Fernando se pegava sempre distraído. Confundiu alguns pedidos e por vezes até cobrou a mais. Estava piorando. Não conseguiria manter dois empregos com outros assuntos rondando sua cabeça.
O relógio cravou dez horas, e com isso o momento de fechar o estabelecimento. O celular emitiu um bipe de mensagem que foi ignorado. Conhecia o remetente e o assunto. Sempre, todo maldito dia, recebia o mesmo texto nesse horário.
Nicolas
Algo para reportar? Podemos nos encontrar hoje?
Fernando o enrolara durante um tempo, dizendo que não estava se sentindo bem, ou que tinha assuntos para cuidar, por fim falando que em breve estaria melhor. Nos dois primeiros dias Nicolas mandou a mensagem durante o turno na padaria, mas depois de uma reclamação de Fernando, passou a mandar após o expediente.
Terminou de fechar a loja, pegou o celular e começou a digitar sua resposta padrão, porém parou antes de concluí-la. Por quanto tempo mais adiaria esse compromisso? Nicolas não parecia ter a cabeça no lugar certo, mas só estava sendo tão insistente porque Fernando o contatou e prometeu que ajudaria. Se odiava por ter feito aquela promessa, não conseguia nem se ajudar, quanto mais aos outros.
Olhou para o relógio, em breve teria que começar as entregas. Mesmo sabendo que quase morrera uma vez, precisava continuar com elas. Como mais iria se manter? Pensou na alternativa de Gabriel e balançou a cabeça, não era o namorado a encarar sua própria família.
Apagou a resposta que escrevia e largou o celular em uma mesa. Caminhou devagar pela padaria. Poderia dizer que não queria mais nada com Nicolas, tinha certeza de que ele aceitaria e nunca mais o contataria. Eles não eram heróis ou detetives para sair investigando os predadores. Deviam deixar aquilo com a polícia ou jornalistas ou qualquer outra profissão investigativa, fariam um trabalho melhor com certeza. Claro que fazê-los levar a sério era outra história.
Sentou-se em uma cadeira próxima. Já era hora de sair, estava se atrasando. Olhou para o celular com o aplicativo de mensagens aberto na tela. Sentindo o arrependimento na ponta dos dedos, escreveu sua resposta.
Fernando
Como nos encontramos?
***
Houve uma época em que fora fascinado por histórias fantásticas. Filmes e quadrinhos envolvendo magia eram seus preferidos. Lembrava-se bem de várias situações em que, para lançar uma magia ou superpoder, o protagonista precisava primeiro visualizá-lo em sua mente. Fernando algumas vezes até ficou irritado com aquelas situações, afinal, era só imaginar, como poderia ser tão difícil? Quem diria que chegaria o dia de fazer algo semelhante.
Sentado no interior da padaria, vestindo roupas que podia se dar ao luxo de rasgar, com um pé da cabra nas mãos e usando a mochila de entregas, tentava visualizar um portal para a morada dos predadores. “Apenas visualize-se indo para outra dimensão, rasgando o tecido entre elas e atravessando”, essas foram as palavras de Nicolas, mas não faziam sentido algum. Tentou mais uma vez, mas nada se formou à sua frente. Pegou o celular e releu as mensagens, para ter certeza que não fazia nada errado. Tentou novamente e não obteve sucesso. Levantou-se e tomou um copo de água, passou no banheiro e notou como suava. Lavou o rosto e encarou o espelho.
— O que estou fazendo?
A figura no espelho mimicou seus movimentos. Ficou encarando o reflexo, lembrando como algumas histórias utilizavam deles como uma forma de transporte e sempre que isso acontecia, o espelho trocava sua imagem para o local de destino, ou para uma espécie de vórtice. Ótimo, estava usando ficção como guia.
Voltou até sua cadeira, se sentou e fechou os olhos. Talvez tivesse que ser mais preciso, queria ir para outra dimensão, mas para onde nela? Pensou no metrô, tinham combinado de se encontrar lá e depois ir para outro lugar.
De repente sentiu sua cabeça tremendo de leve, um balançar constante e ao mesmo tempo calmo, familiar. Abriu os olhos e se viu no interior de um vagão.
— Está atrasado — disse Nicolas ao seu lado, usando roupas formais como da última vez.
— Tuas instruções eram bem vagas. — Balançou a cabeça. Agora tinha um chefe pra ficar cobrando-o e nem lembrava de vê-lo assinando a carteira.
— Foi o que funcionou para mim.
Fernando olhou para as janelas. A paisagem era a mesma de duas semanas atrás, parecia que nada mudara. Levantou-se, segurando com firmeza o pé de cabra. Com uma arma para se proteger não ficaria mais refém da ajuda de Nicolas.
— Vamos só explorar mesmo? — perguntou.
— Correto. — Nicolas começou a caminhar até a divisa entre os vagões. — Temos que entender mais desse lugar, descobrir como funciona e se há outros predadores.
— Vem cá… — Fernando seguiu. — Como tu sabia a forma de voltar para cá? Não parece algo simples.
— Isso eu aprendi sozinho, mas outras coisas eu tive ajuda de uma pessoa.
— E quem é essa pessoa? Ela faz parte do seu grupo?
— Não faz parte do nosso grupo.
— Mas quem é?
Nicolas estava prestes a respondê-lo, porém um tremor percorreu o vagão. Os dois seguraram-se nas barras de apoio para não caírem. O silêncio pairou em seguida, os nós dos dedos de Fernando estavam brancos de tanta força que exerciam.
Após algum tempo sem mais nada acontecer, Nicolas soltou devagar a mão de uma das barras, logo depois soltou a outra. Fernando fez o mesmo.
— Isso não aconteceu da outra vez — comentou Fernando, olhando para frente e para trás no vagão.
Nicolas franziu o cenho.
— Ou o predador original está crescendo, ou é uma presença externa.
— Presença externa? — Por que sempre explicava de uma forma difícil de entender?
— Alguém como nós.
— Um aliado, então? Ufa, pensei que seria pior.
Nicolas não falou nada.
— Espera, não é um aliado?
— Pode ser, ou pode não ser. Já encontrei pessoas que tentaram me matar. Vamos ver. Estou otimista hoje.
Fernando não questionou por que seres humanos se atacariam ali, já sabia a resposta. Também não quis perguntar o que Nicolas fez com eles.
Seguiram em frente atravessando os vagões, vendo alguns com assentos quebrados, estruturas deformadas e janelas rachadas. Passaram até mesmo por portas de desembarque. Depois de vários minutos, chegaram em uma seção destruída. Havia rombos nas paredes, vidros quebrados e fendas no chão. Nicolas parou de caminhar e estendeu o braço para o lado, Fernando obedeceu o sinal e também parou, observando melhor o estrago. As “saídas” do metrô eram pura escuridão, não era possível ver os trilhos, tampouco o lago ou a cidade. Ajeitou as alças da mochila de entregas ao notar o transporte lentamente se reconstruindo. Pouco a pouco o metal se alongava para preencher o vazio, o vidro reunia seus cacos para consertar as janelas e os assentos se reformavam. Lembrou Fernando de sua própria habilidade. Será que havia, em algum lugar, uma aberração sofrendo pela cura do vagão?
Nicolas se aproximou de um buraco na parede e observou-o por diversos ângulos. Fernando não chegou perto, evitava até mesmo manter seu foco na escuridão, procurando qualquer outro ponto de interesse.
— Seja lá quem fez isso, é forte. — O engomado passou um dedo ao redor da seção destruída. — Causar danos ao terreno é quase impossível, é mais fácil matar o predador original e esperar o resto se desfazer.
— E o que isso quer dizer?
— Que precisaremos agir rápido se essa pessoa for um inimigo. No pior dos casos, morreremos antes que eu faça algo.
Fernando olhou para o caminho adiante e sentiu um aperto na garganta.
— E se não for um inimigo? Pode ser só alguém perdido, assim como eu na primeira vez.
— Sim, pode ser.
— Então temos que ajudá-lo!
Nicolas o encarou, examinando-o de cima a baixo. Por fim, mexeu na corda em seu pescoço, olhou para o próximo vagão e falou:
— Sim.
Seguiram adiante, tomando cuidado onde pisavam. Nenhum dos dois comentou sobre a escuridão. Não precisava, Fernando sabia que era ruim. Chegaram na divisória e abriram a porta, vendo um vagão vazio e inteiro. No meio dele, uma mulher praticamente se arrastava, seus pés mal saíam do chão, e a cada passo ela largava a mão de uma das barras e passava para a próxima, avançando até o carro seguinte. Seus longos cabelos cacheados estavam empapados de suor, usava uma jaqueta preta de couro com asas vermelhas nas costas, calça jeans e um par de botinas. Se ela os notou entrando, não demonstrou.
Fernando não se aguentou, era impossível alguém naquele estado ser um inimigo. Passou pelo lado de Nicolas e gritou:
— Viemos te ajudar!
A mulher virou o rosto na direção deles e Fernando parou. A face dela estava tomada por rachaduras vermelhas na pele, pulsando a cada segundo. A esclera era escura e a íris de um tom rubro.
— Não venham! — A voz saiu como um rosnado.
Fernando fitou o pé de cabra nas mãos, abaixou-se lentamente e o largou no chão, levantando-se em seguida.
— Não iremos te machucar. Eu só quero ajudar.
Os olhos da moribunda alternavam entre a ferramenta e Fernando. Ela recuou um passo, passando a segurar com a mão esquerda uma barra que estava um pouco acima dela. Apontou a mão direita na direção deles, os dedos tremendo, o braço oscilando para cima e para baixo em um óbvio esforço para manter-se erguido.
— Não! Vão embora! Mentirosos!
Fernando estava prestes a dar outro passo quando sentiu uma mão no ombro seguida de um sussurro.
— Deixe comigo.
— Ela está assustada, eu… — Fernando virou o rosto, encarando Nicolas. — Eu não acho que tu consiga.
— É só ir com calma.
— Se enforcá-la, eu juro que uso o pé de cabra em ti.
Ele não respondeu à ameaça, apena seguiu na direção da mulher.
— Você está confusa e assustada, acontece com todos daqui — disse Nicolas, elevando o tom de voz.
Ela recuou mais um passo.
— Sai!
— Sem dúvida te atacaram e você apenas revidou. Está tudo bem, não vamos te ferir.
— Eu já disse para ficar longe.
— Nós queremos apenas ajudar, como meu amigo disse, não somos pessoas ruins.
Nicolas estava a poucos passos de distância da mulher. Ele parou de caminhar e estendeu a mão esquerda para ela.
— Venha.
— Eu disse para ficarem longe!
Ela pisou firme no chão metálico, e as fissuras alumiaram. Nicolas levou a mão direita até o colarinho e pareceu ajeitá-lo. Estava receoso? Não, no pouco tempo em que se conheciam, sabia que aquele cara não hesitava. Ao mesmo tempo em que chegou a essa conclusão, uma corda surgiu no ar e enrolou-se no pescoço da moça. Fernando deu um passo adiante, recuou, pegou o pé de cabra no chão e correu em frente. Mal deu dois passos e a vítima do enforcamento reuniu forças para liberar um grito rouco e gutural.
— Fora!
As rachaduras na pele se expandiram, e delas começou a vazar um líquido vermelho incandescente, denso e viscoso. Assim que o fluído entrou em contato com o ar exterior, explodiu como uma bomba. A onda de choque jogou Fernando para trás e tirou a arma de suas mãos. Quando seus sentidos se estabilizaram e o ouvido parou de zunir, levantou-se e olhou ao redor. A mulher estava caída no chão, as fendas na pele ainda pulsando, porém com uma cor mais opaca. Nicolas fora jogado adiante e agora estava sentado.
Fernando sentiu vontade de esmurrar o desgraçado até não poder mais, porém parou ao ver o estado em que ele se encontrava. Nunca foi de entrar em grupos que compartilhavam vídeos de assassinatos e ferimentos brutais, mas pensou que a cena diante de si poderia vir direto deles. O braço esquerdo de Nicolas estava destruído, com pedaços espalhados por perto. O coto era uma massa vermelha e sangrenta, com um pedaço de osso como uma protuberância estranha.
Engatinhou até o ferido, sentiu as mãos tocando o sangue no chão. Ao se aproximar, abriu a boca, mas nada saía. Ficou apenas ali, parado, a mente incapaz de raciocinar.
— Pegue a mulher, temos que carregá-la pra fora daqui — disse Nicolas.
— Ta doido? Olhe o seu… Olha… Seu braço!
Sentia vontade de desviar o olhar e ao mesmo tempo não conseguia. Na verdade, não sabia nem para onde olhar depois.
— Fernando, vou precisar da sua cura.
Sentindo como se levasse um tapa na cara, lembrou-se da mochila. Pegou pães cervejinhas milagrosos que estavam nela e os deu para Nicolas comer. Ele mastigou todos sem dificuldade. Fernando tentou antecipar a dor que viria em seguida, mas ela chegou antes de seu preparo. Começou como uma queimação no braço que só não o derrubou porque já estava ajoelhado. Se curvou, apertando o membro com força, aumentando a dor, mas não sabia o que fazer. Esquecera por um momento do preço a ser pago pela cura, como era burro! Não podia perder o braço, precisava dele! Como explicaria isso para Gabriel? Como trabalharia na padaria? Como faria as entregas?
A dor arrefeceu aos poucos, no entanto a visão do que acontecia serviu apenas para deixá-lo mais paranoico. Viu e sentiu os músculos do braço atrofiarem, a pele tornar-se flácida e em seguida ressecar. Ao final, mais parecia o membro de uma múmia do que o seu próprio.
Levantou a cabeça, mais para tentar ignorar o acontecido do que qualquer coisa. Viu que o braço de Nicolas voltara e parecia tão saudável quanto antes.
— Tu é um filho da puta — disse Fernando, entre longas pausas para reunir ar.
— E você me ajudou mesmo assim. Quer me bater? Faça isso quando estivermos seguros.
Nicolas se levantou e ofereceu a mão para Fernando. Não aceitaria aquela gentileza, não mesmo. Com o braço direito, apoiou-se em um assento e ergueu-se.
Por mais violenta que a explosão tenha sido, não afetou o vagão tanto quanto a eles. Foi fácil se aproximar da mulher, e com a ajuda de Nicolas, ergueram-na, passando os braços por baixo de suas axilas. Não era a forma mais gentil de carregar alguém, mas não estavam em condições de serem cuidadosos.
Passaram pelos vagões anteriormente danificados. Todos já tinham voltado ao normal, era como se o território lhes mandasse um lembrete de que era impossível destruí-lo por completo. Assim que chegaram em frente à porta de desembarque, Nicolas se adiantou e foi o primeiro a botar o pé fora do metrô.
O cenário mudou. O concreto do chão transformou-se em terra coberta de grama, a luz artificial de lâmpadas se tornou a iluminação de uma noite limpa e coberta de estrelas, e o ar enclausurado mudou para um vento forte com cheiro de maresia. Não muito longe de onde estavam, uma construção se erguia na noite. Um farol. E depois dele apenas o mar.
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