- Guilherme Lopes Lacerda
- Posts
- Predadores: A Obsessão - Capítulo 30
Predadores: A Obsessão - Capítulo 30
Dominique encontra um predador racional
No último capítulo, Dominique e Nicolas entraram sozinhos em um território vazio, e lá, Nicolas entrou em contato com o passado do originador para descobrir respostas enquanto Dominique lhe vigiava.
Agora, além de cuidar do companheiro, Dominique precisa lidar com um predador racional e capaz de falar.

Arriscou olhar para o predador. A tontura assomou-lhe mais uma vez, mas não era esse o motivo de sua preocupação. Ele, ou ela, ou aquilo — era impossível definir com cada sílaba sendo pronunciada em uníssono por diversas vozes — falou, não só isso como também sabia a identidade deles. Um arrepio percorreu as pernas, a impulsionando para que eliminasse o predador ali mesmo. E quase moveu-se para fazer isso, porém, não foi ela quem sugeriu para Nicolas a busca por uma alternativa à morte? Isso deveria valer para todos os predadores, ou só para aqueles de quem ela se apiedava?
Baixou o olhar, relaxou um pouco os punhos e disse:
— Nicolas está tentando descobrir como impedir o originador de reaparecer, não posso pará-lo. Não ainda.
— Você não entende. — O predador deu um passo à frente, aumentando a tensão em Dominique. — Ou ele para agora, ou vai morrer e se tornar um dos predadores mais terríveis que existem.
Arriscou um olhar para trás. Nicolas ainda estava envolvido pela luz espinhosa, quase toda sua pele tornara-se preta e branca, também estava maior, o corpo espichado e superando dois metros de altura.
— E por que você se importa? Não é um predador? — perguntou ela, voltando sua atenção à frente.
— Estou do lado dos humanos nessa luta — respondeu, dando mais um passo. Se aproximava devagar e ainda faltavam uns bons metros até chegar perto. — E como pode ver, Nicolas não está bem.
Um predador do lado dos humanos, difícil de acreditar nisso. Era como dizer que a onça estava do lado das capivaras. Seria no máximo uma aliança temporária, durando até o estômago do felino roncar. Porém, o predador tinha razão, Nicolas não estava indo em direção a um caminho bom. Dominique abriu a boca para falar, mas fechou-a imediatamente quando notou a proximidade da coisa. Não tinha corrido nem se movimentado rápido, e mesmo assim, sem que a idosa percebesse, se encontrava a um passo dela.
De perto, as mudanças em sua forma eram ainda mais perceptíveis e perturbadoras. As linhas do rosto se alteravam tanto, e a cor da pele nunca assumia um tom fixo, pintas e sardas apareciam e desapareciam, os olhos sempre mudavam. Em um movimento quase instintivo, Dominique socou e atingiu seu alvo. O predador foi lançado para trás, e a idosa caiu de joelhos no chão.
Naquela fração de segundo que o punho se conectou com a cabeça da ameaça, foi como estar em um turbilhão de vozes, pensamentos, vontades e aflições. Esqueceu de quem era, de quem fora e de quem queria ser. Sua consciência foi sugada pela amálgama de pessoas e retornou surrada. Precisou de tudo de si apenas para manter-se de joelhos, e achou que ultrapassara todos os limites ao levantar a cabeça.
Já o predador se levantava como se nada tivesse lhe ocorrido, como se não tivesse recebido um golpe capaz de matar uma pessoa na mesma hora. Deveriam ter trazido mais alguém, deveriam ter trazido Bárbara, ela sim aguentaria aquela coisa, aguentava tudo.
Conseguiu ficar de pé bem quando a criatura voltou a caminhar em sua direção. Talvez conseguisse impedi-lo ao jogar objetos no maldito, mas o lugar era livre de qualquer pedra que pudesse ser usada como projétil. Dominique olhou para o asfaltou ao seus pés, e considerou quebrá-lo.
No entanto, antes que agisse, um novo predador surgiu no território. Sentiu-o logo atrás de si, bem onde Nicolas estava. Queria olhar, queria checar, mas o outro à sua frente era perigoso. No entanto, era possível olhar para várias direções, não é mesmo? Se mudava seus membros para lâminas, ou aumentava a potência e densidade dos músculos, por que não conseguir olhar atrás de si? Projetou um olho próximo ao cotovelo e durante um momento ficou desorientada por ter um campo de visão tão amplo. Assim que se acostumou, viu os espinhos atacando Nicolas, a luz abrira cortes em seu corpo e entrava por eles, preenchendo o corpo do líder. A pele parecia diferente também, como se fossem escamas de réptil.
— Rápido! Tire ele daqui!
Sendo um aliado ou não, a coisa tinha razão. Nicolas estava a um passo de se tornar um predador. Isso ela não permitiria, não perderia seu líder, o guia, a esperança. Desfez o olho extra e girou na direção da luz, correu até o homem e envolveu sua cintura com os braços. Cada fibra do seu corpo dizia que estava diante de um predador, mas Dominique acreditou que ainda tinha chances. Usou toda a sua força e puxou-o para longe, afastando-o da luz, fazendo os espinhos saírem aos poucos de seu corpo, diminuindo cada vez mais a sensação de que ele era um inimigo. Quando ele estava liberto, a idosa não hesitou e transportou-se para o farol.
Ressurgiram em meio a grama próxima à construção. Dominique projetou diversos olhos em seu próprio corpo, cobrindo todos os pontos cegos de sua visão humana e causando-lhe náuseas até que se acostumasse. Esperava que o predador fosse atrás deles, porém nada aconteceu, nenhuma ameaça os seguiu. Removeu os olhos adicionais e deitou Nicolas no chão.
O corpo do líder voltara ao padrão humano, sem escamas para encobrir a pele, e os cortes abertos pela luz espinhosa desapareceram sem deixar nenhuma cicatriz ou rastro de sangue. Não fosse pelo suor que molhava sua roupa, seria como se nada tivesse acontecido. Dominique sentou-se ao lado dele, finalmente relaxando. De alguma forma, tudo deu certo. E por certo entendia-se os dois saírem com vida. Lembrou-se então das palavras do predador. Teria o homem à frente dela se tornado um dos predadores mais fortes se ficasse mais alguns segundos naquele processo? Será que a transformação afetou sua mente mais do que o corpo? O fardo que ele carregava era pesado, mais pesado que o resto do grupo, e ainda assim, seguia em frente sempre, sem hesitar. Aproximou a mão para tocar o rosto de Nicolas, mas seus olhos abriram na mesma hora e focaram-se na idosa. Dominique recuou do toque.
— Como você está? — perguntou ela.
— Bem. — Ele se sentou, cruzando as pernas e olhando para o horizonte. — O que aconteceu?
Dominique explicou em detalhes o ocorrido. O tempo todo, Nicolas não moveu os olhos uma vez sequer, mantendo-os fixos em um ponto distante no mar. Sua única reação foi um levantar de sobrancelha ao mencionar as escamas que cobriam seu corpo. Quando a história terminou, o silêncio tomou conta do local por alguns minutos.
— Lembra de algo quando você tocou naquela luz?
— Nada. — A resposta foi seca, mais do que Dominique esperava. — Eu lembro de ver o originador morrendo, igual você viu, mas o resto é um borrão.
— Você… pretende fazer de novo?
— Eu deveria, mas… — Olhou para a própria mão. — Não é uma boa ideia. Piora o fato de ter um predador de olho naquilo.
— Conseguimos nada, então. — Dominique suspirou.
— Não é bem assim. — Nicolas encarou Dominique, o olhar dos dois finalmente se encontrando. — Você fez bem em conversar com ele. Sabemos agora que existem predadores racionais, e se formos atrás dele podemos obter mais respostas.
Dominique sorriu de leve. Ele tinha razão, não foi uma incursão inútil, apenas o resultado fora diferente do esperado. Porém, uma coisa passou a incomodá-la.
— Todos os predadores possuem um território, certo? — perguntou ela.
— Sim, todos até agora.
— Então como aquele saiu de seu território e foi parar em outro? Isso é possível?
— Deve ter um detalhe que não estamos percebendo. — Nicolas quebrou o contato visual e levantou-se. — No fim, é mais um mistério em nossa lista. Um para pensarmos com bastante consideração.
— E imagino que fará isso agora mesmo.
— Sim. — Ele olhou o topo do farol. — Pretende mesmo ficar aqui de agora em diante?
Que mudança brusca de assunto.
— Pretendo, não acha uma boa ideia?
— Quem decide isso é você. Só não acho muito inteligente dormir direto no chão.
— Bem… — Dominique coçou a bochecha e passou a se apoiar na perna direita. — Não tive muita escolha, foi o que deu para pegar na hora.
— Deixe comigo, apenas espere um pouco.
E então Nicolas desapareceu, deixando Dominique com a boca meio aberta prestes a fazer uma pergunta. Ela suspirou. Bem que ele poderia se explicar mais antes de sair fazendo as coisas, e também dar um tchau ou até logo não seria ruim. Se bem que o “Espere um pouco” talvez seja o equivalente de “Já volto” para Nicolas.
Caminhou até o topo do farol, apoiou os braços na cintura e observou o “aposento”. Era cru e frio, sem uma pitada sequer de personalidade. Talvez, se ela pedisse para Nicolas, poderiam dar um pouco de cor e vida ao local. Um quadro ali, talvez uma santinha de Nossa Senhora Aparecida, uma mesa para refeições seria bom, também. Teria que pensar nos detalhes ao longo do tempo, e fazer o pedido de uma vez só. Odiaria ver Nicolas se tornando um entregador de encomendas, ainda mais que ele era tão ocupado. Por outro lado, talvez fosse engraçado ver isso acontecendo. Uma parte de sua mente imaginou um caminhão de entregas aparecendo do nada no farol, descarregando sofá, cama e televisão. Os trabalhadores, confusos, apenas deixavam tudo no chão enquanto questionavam como foram parar ali.
Quando Nicolas voltou, trouxe consigo um colchão inflável. Não levaram mais do que cinco minutos para posicionar e inflar ele utilizando uma bomba de ar. Não era confortável, e nem de longe tão bom quanto o colchão que tinha em casa, mas era melhor do que deitar no metal duro. Não pôde evitar um sorriso enquanto Nicolas lia as instruções de bom uso indicadas no manual.
— Obrigada.
— Não me agradeça. — Ele levantou os olhos da folha. — Estou apenas garantindo que esteja apta para continuarmos as atividades do grupo.
Dominique deu de ombros. Toda e qualquer ação daquele homem parecia ter uma lógica ou justificativa plausível por trás, mas não era bem assim que as coisas funcionavam, e ela sabia disso. Podia manter a fachada de frio o quanto quisesse, Dominique via nas pequenas ações o quanto ele se importava com o grupo para além da simples utilidade.
Com Nicolas liderando-os, mesmo que mais e mais mistérios surgissem ao redor dos predadores, seriam capazes de vencê-los.
Reply