Predadores: A Obsessão - Capítulo 39

O grupo, finalmente reunido, se apressa para escapar do território antes que envelheçam demais

No capítulo anterior, o grupo conseguiu se reunir, porém estavam separados por uma parede de vidro resistente. Bárbara conseguiu abrir caminho utilizando seu vestígio, mas ficou inconsciente por conta do esforço.

Agora, com o tempo correndo e os dias passando a cada segundo, o grupo precisa escapar do território antes que seu tempo de vida se esgote.

Desenho monocromático. A imagem mostra uma passarela aberta de pedestres, com o céu e nuvens ao fundo. Nas laterais da passarela, diversas portas estão flutuando em ângulos diferentes. No canto topo da imagem há o número trinta e nove para indicar o capítulo.

Ele viu Bárbara usar sua habilidade diversas vezes, mas em nenhuma delas o efeito foi tão forte quanto o que acabara de presenciar. A sala inteira tremeu e balançou com a explosão, como se uma fosse uma criatura abalada por receber um ferimento. Até mesmo o som normalmente alto e agudo, preenchendo sua audição com um zumbido, se manifestou em um tom grave, sendo que a maior parte do barulho veio da vidraça quebrando.

Fitou estupefato o outro lado, encontrando o olhar da motoqueira. Seu corpo inteiro era uma mescla de fendas vermelhas e pele. Bárbara mirou Fernando e Nicolas antes de levantar o braço fazendo sinal positivo com o dedão e desmaiar. Ela só não caiu de cara no chão porque Dominique surgiu no último segundo e tomou-a em seus braços, saltando em seguida através da janela até a parte onde os dois homens estavam. Com a proximidade, Fernando notou como corpo de Bárbara parecia feito de vidro, as rachaduras ramificavam-se e em alguns lugares era quase possível ver através do corpo da mulher. Talvez apenas o fato de soltá-la a quebrasse por completo, espalhando cacos igual ocorreu com a janela.

Sem tempo a perder, Fernando tirou a mochila das costas e retirou um pão australiano de dentro. No entanto, antes que pudesse dá-lo a Bárbara, Nicolas interveio:

— É melhor não fazer isso.

— Não quero nem saber — disse Fernando, dando um passo em direção à Bárbara e Dominique.

Nicolas segurou seu braço.

— Me ouça, se der o pão a ela, teremos você imóvel e incapacitado por sabe-se lá quantos minutos. Não temos esse tempo.

— Ela está com dor, eu que não vou ficar parado quando minha habilidade é curar os outros. — Desvencilhou-se de Nicolas e chegou nas duas mulheres, sentindo os cacos embaixo do tênis a cada passo. — Aqui está ruim, coloque ela no chão lá.

— Fernando… — começou Dominique.

— Eu não sou idiota, sei muito bem o valor de cada segundo aqui. — Cerrou o punho livre. — Vou ajudar ela só um pouco.

A idosa trocou um olhar com Nicolas, e então obedeceu, acomodando Bárbara em um canto que não estava inundado de cacos. Fernando sentou-se ao lado da colega inconsciente e arrancou um pequeno pedaço do alimento escuro. Veio a dúvida, como alimentar alguém inconsciente? Mais uma vez, arrependeu-se de não saber nada de primeiros socorros enquanto tentava despertar chamando-a e dando leves tapinhas no rosto sem obter resultados. Respirou fundo e apertou forte o pão, esmigalhando-o.

— Talvez seja melhor esperá-la acordar naturalmente — disse Dominique, baixinho.

Fernando negou com a cabeça, ainda pensando como faria para ajudar Bárbara.

— Caminhamos por salas estranhas e encontramos um retrato — disse a idosa. Fernando a olhou de canto, tentando entender do que ela estava falando, então notou que a fala era direcionada à Nicolas. Nem notou o cara se aproximando.

Dominique revirou a calça de Bárbara, tirou do bolso uma fotografia e mostrou para o líder. Fernando quase reclamou da conversa enquanto ele agoniava pela companheira desmaiada, mas queria entender do que se tratava.

— Reconhece alguém?

— Eu reconheço o lugar. — Nicolas espremeu os olhos. — Acho que sou eu ali, mas não sei quem é o outro.

— Bárbara e eu conversamos. — Dominique virou a foto para si e em seguida, vendo que Fernando os observava, mostrou para ele também. — Achamos que os territórios sempre são conectados a alguém. O metrô estava relacionado ao maquinista, o hospital com aquela moça, esse aqui pode estar ligado a você.

Nicolas franziu o cenho, mas nada disse. O desgraçado escondia algo, Fernando tinha certeza disso e, conhecendo Dominique, ela não questionaria muito. Queria que Bárbara se levantasse em um pulo e fizesse algumas perguntas na cara do engomadinho, mas sabia que era impossível. Cabia a si esse dever.

— Não teve nenhum amigo nessa época? — perguntou Fernando.

— Nunca fui próximo de ninguém.

— E isso é verdade?

— Esse território vem fazendo zero sentido até o momento. A foto pode ser algo criado por ele. — Nicolas ajeitou a gola do paletó.

— Exclusivamente para ti? Uma foto sua adolescente?

— E a última foto que encontramos em um território nos ajudou muito. — Dominique finalmente se manifestava.

— Não tem ninguém! — gritou Nicolas. Não eram como os gritos no meio de combate, cheios de razão e lógica como Fernando sempre sentiu. Era diferente, repleto de raiva. Depois de um suspiro, continuou, de volta à sua neutralidade de sempre. — Preciso de um minuto.

Ele se afastou, indo para o outro canto da sala e sentando-se no chão virado para a janela quebrada. Fernando voltou, ou tentou voltar, à sua tarefa de curar Bárbara. Não poderia simplesmente enfiar o pão goela abaixo, isso a mataria engasgada. Sua mão abria e fechava repetidamente, enquanto ele pensava, tentando encontrar uma forma de ajudar a amiga. Nada veio, estava sem ideias. Seu único alento era o fato da mulher não continuar enfraquecendo, estava frágil sim, porém estável.

Olhou na direção de Nicolas, que continuava parado no mesmo lugar, olhando para o mesmo ponto distante. Avizinhou-se do líder e abriu a boca para perguntar, porém foi interrompido.

— Eu sei como sair desse lugar — disse Nicolas.

— Tu sabe agora? Como? — Parecia bom demais para acreditar.

— Vocês confiam em mim? — Ele se ergueu.

Fernando hesitou em sua resposta enquanto a voz de Dominique chegava até eles.

— Confio.

— Depende, qual a ideia? — perguntou Fernando.

— Abrir portas até chegar na saída.

— Isso… Isso não é um plano! — Fernando colou no líder e apertou seu ombro. — É o que estamos fazendo já.

— Não, estávamos explorando demais, perdendo muito tempo. — Nicolas olhou em direção às portas. — Nosso método será entrar em uma sala, procurar a saída mais próxima e pegar ela.

— Eu não estou entendendo — disse Dominique. — Isso só não vai nos fazer andar sem rumo? Quantas portas teremos que abrir?

Fernando assentiu em concordância, aguardando uma resposta de Nicolas.

— Não sei. — Ele ergueu o indicador antes que qualquer um levantasse outro questionamento. — Mas é assim que tem que ser. Não há uma saída fácil, tudo que temos é uma árdua jornada para alcançar nosso objetivo, correndo o risco de nunca o atingir. — Encarou os colegas. — Por isso é de suma importância que confiem em mim, caso contrário não chegaremos a tempo.

Fernando olhou para Dominique, e a idosa lhe devolveu o olhar. Cada segundo era um dia perdido, cada minuto ponderando sobre ideias alternativas significava um mês jogado fora. Arriscar o plano de Nicolas ou pensar mais? O simples fato de ruminarem ali já poderia ser considerado uma perda de tempo. Estava assustado antes, mas só agora notava a crueldade do território em que estavam.

— Eu não confio em ti — declarou Fernando. — Confio no plano. Vamos com ele.

— É o suficiente. — Nicolas virou-se para uma das portas e começou a caminhar. — Dominique, você fica a cargo de Bárbara. Não se preocupem com inimigos, nosso objetivo é manter um ritmo estável até o final.

Fernando ajudou Dominique a colocar Bárbara em suas costas e logo os dois se aproximaram de Nicolas. Sem hesitar, o líder abriu a passagem e atravessou-a, com os dois em seu encalço. Chegaram em uma sala de estar que poderia ser descrita somente como coisa de rico, eram tantos móveis e lâmpadas que Fernando nem conseguiu absorver tudo, apenas foi capaz de contar oito sofás antes de passar junto aos outros para o próximo cômodo. Viram-se em uma espécie de ginásio escolar, com quadra de futsal e cestas de basquete. A porta deste estava a poucos passos de onde chegaram. Passaram por um laboratório de química, uma sala de estar comum, uma varanda comprida onde só se enxergavam nuvens, uma biblioteca. A única vez em que parou de seguir os demais foi quando depararam-se com uma garagem sem carros onde cinco cadáveres, reduzidos a ossos apenas, estavam no chão.

— Não parem! — Nicolas já estava perto da saída. — Não temos tempo para isso.

Fernando engoliu qualquer observação ou reclamação que se formava em sua garganta e foi até Nicolas. A partir dali, foram tantos cenários e locais que seus detalhes se misturavam na cabeça de Fernando, criando localizações sem sentido. Tinha mesmo visto a privada no meio de um escritório? A sala com os oito sofás de antes era realmente tão grande?

Nova sala. Porta. Nova localização. Porta. Novo cômodo. Porta. Mais mortos. Porta. Seu cérebro condicionou-se a esperar o som da maçaneta girando e a lingueta se recolhendo a cada poucos segundos, chegava a estranhar quando demorava um momento a mais para saírem. Seguia Nicolas sem sequer raciocinar o que faziam. Precisava só caminhar, só ir frente.

Como era cansativo. Estava só andando, não? Então por que se sentia tão acabado? Era sua cabeça? Ou passaram por inúmeras portas, percorrendo quilômetros impossíveis de medir? De alguma forma, Nicolas acelerou o ritmo, e as salas se tornaram um borrão indistinguível, era tão pouco tempo para absorver os arredores que Fernando desistiu de tentar.

Uma buzina de caminhão soou alto, trazendo de volta a consciência de Fernando junto. Estacou e absorveu seu entorno. Estavam em cima de uma passarela, abaixo deles havia uma rodovia com carros, caminhões e motos circulando sem parar. Viu diversas portas flutuando no ar e próximas à estrutura, algumas de madeira, outras de metal, e algumas sanfonadas. Todas fora do alcance do grupo.

Outra buzina soou, desta vez de um carro. Fernando foi até a beirada da passarela, apoiando-se no parapeito composto de três barras de metal. Logo abaixo havia um corpo humano estirado no chão com braços e pernas em ângulos que não deveriam estar. Veículos passavam por cima dele quase sem notar, alguns buzinavam, mas não faziam questão de frear ou desviar. Pela movimentação da pista, o cadáver deveria ser nada mais que uma pasta de carne e ossos esmagados no asfalto, mas ele mantinha sua forma.

— Está gastando nosso tempo — disse Nicolas.

Fernando virou-se para o companheiro, e deu de cara com alguém mais velho do que lembrava. Fios de cabelo branco despontavam no penteado outrora cheio de gel, mas que agora estava todo desgrenhado, o rosto repleto de rugas e os olhos afundados mostravam um cansaço que se equiparava ao que Fernando sentia.

— Quantos anos se passaram? — perguntou Fernando.

— Não sei, mas perderemos mais se ficarmos aqui.

Nicolas voltou a caminhar para o outro lado da passarela e foi seguido pelo padeiro. O peito de Fernando apertou quando se aproximaram de Dominique, que os esperava no meio do caminho. Esperou vê-la em uma situação muito mais grave, mas, curiosamente, a idosa conservava sua aparência de antes.

Atravessaram a passarela e desceram as escadas que davam até o chão, encontrando no final delas uma porta de madeira. Esta, diferente de todas que Fernando se lembrava de ter visto, possuía identificação: uma plaqueta riscada no meio diversas vezes, ocultando o cargo ou nome de alguém.

Passar pela porta os levou a um consultório. Havia uma dezena de cadeiras estofadas viradas na direção de uma mesa, e do outro lado, uma cadeira de escritório. Boa parte do cenário foi ignorada em razão da sensação exalada pelo originador habitando o local. Fernando trancou sua respiração enquanto ele se levantava de uma das cadeiras de pacientes e olhava o grupo.

O predador era nada mais que uma pessoa nos seus vinte e tantos anos. Possuía cabelos cacheados e curtos, os olhos adornados com olheiras profundas, roupas caídas e largas, como se tivessem sido usadas por tempo demais. Seria um encontro afortunado se as pernas de Fernando não ameaçassem falhar.

— Senti sua falta — disse o originador, abrindo um sorriso para Nicolas. — Nunca achei que chegaria até aqui, não inteiro. Como foi a experiência?

A resposta de Nicolas foi rápida e surgiu no formato de uma corda, enrolando-se no pescoço do predador e puxando-o para cima. Em questão de meio segundo, a sala caiu em silêncio profundo enquanto o corpo balançava sem nem ao menos se debater. A sensação desapareceu, o originador estava morto.

Tantos anos perdidos para acabar tão rápido.

— Vamos embora — disse Nicolas.

A estrutura da sala começou a se desfazer, chão caindo, paredes perdendo a tinta e as cadeiras apodrecendo. Fernando fechou os olhos, aliviado e tenso ao mesmo tempo, pensou no farol, sentindo-se capaz de fugir para lá, e foi isso que fez.

Assim que todos reapareceram no topo do farol, Fernando olhou para seus companheiros. Rugas permeavam o rosto de Nicolas, os cabelos estavam mais frágeis e a cor menos vibrante, e manchas senis se faziam presentes na pele. O mesmo se repetia em Bárbara. Respirou fundo enquanto pegava seu celular e checava o horário, exalando todo o ar ao notar que ainda estavam em 2019. Sua mão tremia enquanto observava os segundos passando devagar, como era o certo.

Abriu a câmera frontal do aparelho e checou a si. Não ficou incólume pelos efeitos do tempo, estava com alguns poucos fios brancos, a pele mais flácida e seca. Antes que se entregasse ao pessimismo da situação, notou Dominique deitando Bárbara no chão. Não era o momento de se abalar, precisava primeiro cuidar de sua companheira, tristeza e arrependimento viriam depois.

Desta vez conseguiu acordar Bárbara e a fez comer aos poucos um pão. Seu corpo foi tomado por um calor enorme, sentia-se dentro de um forno em temperatura máxima. Fernando cerrou o maxilar suportando a muito custo a dor. Lágrimas caíram de seus olhos enquanto as rachaduras sumiam de Bárbara e surgiam em seu próprio corpo. A dor apagou sua consciência antes que conseguisse se certificar da recuperação da moça.

Quando acordou, encontrou o farol quieto. Bárbara e Dominique estavam sentadas ao seu lado conversando baixinho, e não havia nem sinal de Nicolas. Sentou-se devagar, sentindo cada músculo e osso de seu corpo protestar contra a ação.

— Vai com calma, tu apagou não faz muito — disse Bárbara, colocando uma mão em seu ombro.

— Não acho que alguns minutos farão diferença — disse Fernando, curvando-se um pouco para frente. — E Nicolas?

— Nem perde teu tempo pensando nisso. — Ela bufou. — Acredita que ele foi embora? Meteu um “Melhor todos descansarem” e sumiu.

— Não foi bem assim — disse Dominique.

— Ele disse algo do originador?

— Quase nada, só disse que era alguém que devia estar morto há muito tempo. — Bárbara balançou a cabeça. — Mais uma vez ele esconde coisas da gente.

— Em teoria, ele acabou de matar alguém que conhecia — disse Dominique, apiedando-se.

— Não o defenda. Pela velocidade que enforcou o predador, não eram tão próximos.

— Sabem para onde isso está levando, certo? — perguntou Bárbara, a voz um tanto incerta e trocando olhares com os dois. — Ou a teoria minha e de Dominique sobre o predador ser relacionado a uma pessoa é verdade, ou o predador é uma pessoa que de alguma forma virou um monstro.

— Deveríamos perguntar a Nicolas, talvez ele tenha alguma ideia — sugeriu Dominique.

— Ainda com isso?! — rugiu Fernando. — Ele esconde quase tudo e nós vamos usá-lo como fonte de informação?

— Por que vocês dois implicam tanto com Nicolas? — Dominique franziu o cenho. — Tudo que ele faz é para ajudar os outros, duvido que sem ele teríamos passados tão bem por cada território.

— Bem? Bem?! — A raiva concedeu uma energia desconhecida ao corpo de Fernando, e quando deu por conta já estava em pé. — Olhe para mim e Bárbara, nossa vida já era! Envelhecemos sei lá quantos anos.

— E ainda assim sobrevivemos. Você teria conseguido fazer isso sem ele?

— Não, não teria. E também nem me envolveria com essas merdas. — Botar essas palavras para fora tornaram a ideia mais sólida e real, uma ideia que já vinha maturando desde o primeiro território. Fernando falou, desta vez com a voz mais controlada:

— Se eu fosse vocês, manteria distância disso tudo. Vamos acabar mortos por conta daquele maluco.

Sem esperar uma réplica, sem trocar olhares com ninguém, sem dar mais satisfações, Fernando voltou para sua casa. Surgiu na sala de estar, logo atrás do sofá onde o namorado assistia televisão. As luzes da sala estavam acesas e o relógio digital na parede marcava duas horas da manhã, mas pela primeira vez não se importou com o tempo. Haviam problemas bem maiores a serem resolvidos.

— Gabriel.

O namorado se levantou em um pulo, virando-se. Seu olhar passou de alívio para algo diferente. Medo e preocupação. Sua mandíbula se movia, prestes a disparar uma pergunta, mas ela não deixava sua boca.

— Esse foi o último território para mim.

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