Predadores: A Obsessão - Capítulo 40

Nicolas volta ao seu apartamento e encontra Magno

No capítulo anterior de Predadores: A Obsessão, o grupo conseguiu escapar do território do tempo, porém pagaram o preço com seu tempo de vida. Cada um se separou, e Fernando declarou ser seu último território

Agora, de volta em seu apartamento, Nicolas encara o resultado de suas escolhas e a dificuldade de atingir seus objetivos, quando é visitado por Magno.

Desenho monocromático. A imagem mostra um ser humano se transformando em uma cobra bizarra. O tronco ainda é humanóide, porém das pernas para baixo o corpo se estende por muito metros, e nesta extensão, estão surgindo diversos pares de braços. O pescoço é alongado e a cabeça é similar ao de uma cobra, porém com apenas um olho e com dentes humanos. No canto superior esquerdo da imagem há o número quarenta para indicar o capítulo.

Olhar-se no espelho revelou o rosto pertencente a um velho. Suspirou, abriu a torneira e lavou o rosto com água, sentindo nos dedos enrugados as marcas que o tempo deixou na sua face. Não imaginava que, de todas as pessoas para se tornarem originador, Heitor seria uma delas. Aquele incompetente. Em seguida lavou o cabelo, juntando água na mão e levando-a até o topo da cabeça, onde deixava escorrer até a pia. Pouco a pouco, livrou-se do que restava do gel, pegou a toalha de rosto e se secou. Não se incomodou com os respingos espalhados pela pia e chão.

Seu corpo exigia descanso, um intervalo nas atividades para se acomodar à nova idade. A mente queria um tempo apagado para entender tudo que se passou, mas Nicolas ignorou essas necessidades e seguiu até a cozinha, onde, com movimentos mecânicos e decorados, colocou água e pó na cafeteira. Fechou os olhos enquanto ouvia o líquido sendo despejado no filtro e escorrendo até a jarra. Pegou sua maior caneca, serviu-se e caminhou até o quarto.

Seus pés pararam no batente que dava acesso à sala de estar. Lá, no meio do cômodo, estava um homem alto, de peito estufado e olhar confiante, com expressão séria e compenetrada, de feições meio quadradas e nariz romano. Trajava roupas simples, camiseta branca, calça jeans cinza e um par de sapatênis marrons. Havia algo preso na gola da roupa, um microfone de auditório talvez? De tudo para acontecer, Nicolas não esperava uma visita.

— Preciso me apresentar? — falou o homem, a voz alta e clara.

— Não. — Nicolas encarou-o. — O que o fundador de um culto faz aqui?

— Parabenizá-lo, é claro. Nunca imaginei que alguém fosse capaz de eliminar aquele território, era muito antigo e poderoso.

— E precisou vir até aqui para isso? Um e-mail ou mensagem já serviriam.

Magno sorriu.

— Também vim recrutá-lo.

Nicolas entrou em um território. Olhou em volta, notando os arredores iguais, porém sabia que fugir para o farol, ou qualquer outro lugar, seria inútil. Ainda tinha suas pílulas de fuga, e apesar de ter dúvidas quanto à eficácia delas, serviriam como um último recurso.

— Você entende que acabou de se prender aqui? — Nicolas franziu o cenho.

— Não tem problema, sairei quanto o território for desfeito.

A forca de Nicolas apertou ao mesmo tempo em que uma corda se materializou perto de Magno, enrolou-se no pescoço do cultista e começou a puxá-lo para cima com um solavanco. No mesmo instante, a corda desapareceu e ressurgiu no pescoço de seu invocador. Não fosse sua reação rápida em parar o vestígio, Nicolas ficaria suspenso.

— Não faça isso, vai apenas se machucar. — Magno balançou a cabeça. — Voltando agora ao tópico do recrutamento, você é especial, Nicolas. Não tinha nada, objetivos, amigos, familiares, sua morte não faria ninguém sentir falta, mas não se tornou um esquecido, tornou-se um portador…

Atacou mais uma vez, esperando pegá-lo desprevenido no meio da sua fala idiota. Assim que a corda estava prestes a afetá-lo, desapareceu e ressurgiu em Nicolas. Precisou desativar a habilidade antes que quebrasse o próprio pescoço. Aliviou o aperto do vestígio. Qual era o truque?

— Já disse, não vai funcionar. — Magno suspirou. — Se bem que explicar isso é inútil, pois assim como eu sou a justiça, você é a obsessão.

— E isso significa que você não pode ser tocado? — perguntou Nicolas.

— Não posso ser afetado por alguém praticando ações injustas. — Magno ostentava um sorriso arrogante.

Como se isso fosse verdade. Deveria ter algo que acionava sua habilidade, algum detalhe escondido no meio daquele show de confiança. Nicolas passou a olhá-lo de cima a baixo, tentando encontrar ao menos uma vulnerabilidade.

— Continuando nosso assunto, sua obsessão atual não vai levá-lo à nada. Predadores e originadores são nada mais que pessoas, e como você mesmo já viu, destruir um território é uma medida temporária. Sempre haverá um substituto para reconstruí-lo.

— Seja direto, para que quer me recrutar?

— Sem ataques dessa vez? Ótimo. — Magno bateu palmas uma vez. — Destruir os predadores é como enxugar gelo, por isso deveríamos fazer o contrário e abraçá-los. — Abriu os braços. — Territórios não interagem entre si, aqueles que estão presos em um nunca serão afetados por predadores de outro. Meu objetivo é formar minha própria zona e manter as pessoas seguras lá. É a única saída para o problema.

— Muito altruísta da sua parte. — Nicolas quase revirou os olhos com tamanha baboseira. — Nem parece que você oferecia pessoas aos predadores.

— O fardo dos líderes é saber quais recursos usar. — Ele fechou os olhos e abriu-os em seguida. Seu sorriso sumiu e a voz ficou mais baixa. — Eu preciso entender mais do funcionamento dos predadores. Foi graças a esses sacrifícios honrosos que descobri que pessoas à beira do colapso mental ou físico são mais propensas a serem raptadas. Por isso o perigo é tão grande: quem nunca olhou para o precipício escuro e infinito dentro de si e pensou em se atirar?

— E esses sacrifícios foram todos voluntários, imagino.

— Claro que não. É cruel, eu sei, mas a justiça raramente anda de mãos limpas.

— E quer minha ajuda nesse plano?

— Sim! Você liderou um grupo pequeno, mas conseguiram acabar com diversos territórios. Se alinharmos sua obsessão aos meus objetivos, imagine o que seremos capazes de alcançar? — Ele estendeu a mão para Nicolas. — O que me diz?

Nicolas observou a palma de Magno, e em seguida os pés do homem. Estavam mais perto, o cultista era confiante o suficiente para se aproximar. Nicolas deu dois passos curtos, esticando sua própria mão, e então riu. Riu como nunca havia feito. Seu corpo oscilou, derrubando algumas gotas de café no chão da sala.

— Realmente tentou me convencer com esse discurso idiota? Eu sei de quase tudo isso. Desde o primeiro território eu sei que predadores são apenas pessoas azaradas, e não levou muito tempo para descobrir que originadores são pessoas como eu e você. Como foi que chamou mesmo? Portadores?

Magno franziu o cenho. Não havia tristeza fingida ou sorrisos mascarados ali.

— Então por que continua enfrentando os territórios? Não vê que é inútil?

— Eu queria mais informações, simples assim.

— Agora que as tem, vai se juntar a mim?

Nicolas aproveitou a leve incerteza que sentiu na voz de Magno. O cultista apareceu achando que era capaz de influenciá-lo e agora tinha suas dúvidas. Como era bom acabar com as expectativas desse tipo de gente.

— Não. Sua solução parece possível, mas há outra mais interessante. — Nicolas sorriu. — Se predadores são pessoas, basta eliminar todas.

— Isso é… — Ele parou com a boca aberta por um momento — impossível! Como consegue ao menos falar algo assim?

— Como disse, eu sou a obsessão, a ideia combina comigo. Assim como a de um território “seguro” combina com você, que não é a justiça.

— Filho da puta — disse entredentes. O verdadeiro temperamento do cultista vazava, seus olhos chamuscavam Nicolas. — Mesmo que fale grande, sabe que não tem como sair daqui. Você não pode me parar, ninguém pode!

— Podem sim, e você sabe disso. — Fitou a xícara de café, que ainda estava fumegante. — Conheço duas pessoas com essa capacidade, a primeira sendo eu.

Levantou os olhos para Magno e atirou o líquido contra ele. Café acertou rosto e peito, arrancando um grito do cultista outrora tão confiante. Enquanto o homem recuava com a mão na face, Nicolas invocou a última corda de que precisaria. Ela enrolou-se no pescoço do alvo, mas antes que puxasse o maldito para cima, Nicolas viu os olhos de Magno entre os dedos que tapavam o rosto, focados e raivosos. Desfez sua corda antes que acabasse se enforcando sozinho.

— Para quem quer acabar com a humanidade, você hesita bastante contra um único homem. — Magno tirou as mãos do rosto vermelho e pingando com os restos do líquido.

Nicolas cerrou a mandíbula. Tinha a opção de fugir ainda, mas nada garantia que não seria rastreado, e na próxima vez viriam quando estivesse vulnerável. Era um confronto impossível de vencer com medidas meia-boca. Ou jogava tudo de si contra Magno, ou morria. Deveria ter pensado em alguma medida de emergência para esse tipo de situação, uma forma rápida de chamar Dominique e Bárbara, mas isso envolveria mostrar a elas sua localização. Tudo bem, usaria as ferramentas que tinha à disposição.

Aliviou o aperto do vestígio em seu pescoço e invocou dezenas de cordas contra Magno, cada uma mirando em partes diferentes do corpo, algumas com intenção de apenas restringir, outras com a missão de apertar até quebrar ossos. Enxergou os lábios do cultista movendo-se, e antes mesmo que as cordas o atingissem, trocaram o alvo para seu invocador.

Nicolas teve suas pernas puxadas para trás, os pulsos foram esmagados, os tornozelos quebrados e o aperto no seu pescoço se intensificou tanto pelo vestígio quanto por uma corda que mirava em Magno. Caiu no chão sem gritar nem tirar os olhos de seu alvo. Seja lá qual fosse a habilidade exata do cultista, era ativada pelos lábios e podia repelir vários ataques em diferentes partes do corpo. Funcionava com um número grande de atacantes também? Impossível dizer. O jeito era continuar pressionando.

Continuou criando mais cordas, desta vez tentando apenas apertar o cultista. Todas, sem exceção, trocaram o alvo. O aperto no pescoço se intensificava cada vez mais, e agora não tinha nem mãos disponíveis para aliviá-lo. Ainda assim, não parou, fez dezenas, centenas. Respirar tornou-se impossível com o aperto da forca e, mesmo sem querer, seu corpo debatia-se em busca de oxigênio, de mais uma inspiração para seus pulmões.

À sua frente, Magno continuava parado, fitando-o como um humano olharia para uma barata inconveniente. Nicolas sentiu-se satisfeito de ter acertado pelo menos o café, seria sua vitória mesquinha em vida. Materializou uma última corda, mas antes mesmo que ela fosse até seu alvo, o aperto do vestígio se intensificou e rompeu a resistência dos ossos. O pescoço amoleceu, e sua cabeça, antes erguida, tombou. Os olhos continuaram abertos, fixos no inimigo que mal conseguiu ferir.

— Uma perda de tempo. — Magno suspirou, passando a mão no rosto. — Só serviu para eliminar um incômodo. — Olhou na direção do escritório. — Pode desfazer o território.

— Eu desfiz — respondeu algo lá de dentro. — Mas tem outro ativo agora.

Magno virou o rosto para o homem morto no chão e seus olhos arregalaram-se. Não esperava esse resultado. Na sua cabeça, tinha uma vitória completa. Como era burro, nada mais que uma criança achando que sabia algo do mundo à sua volta. Nicolas sorriu, divertindo-se com a situação.

***

Longe de Magno e Nicolas, separado por centenas de quilômetros, Pietro sentiu um calafrio terrível percorrendo sua espinha, do tipo que só as visões mais terríveis traziam. Era o nascimento de um novo monstro, um novo originador, e algo a mais. Pegou seu vestígio, conectou os fones de ouvido no celular e ficou olhando para a tela, desejando que ela lhe mostrasse o que ocorria.

Não demorou muito para encontrar a fonte do medo. Se passava em uma sala de estar vazia, de um lado estava um homem, Magno, e pelo que obteve dele, era o líder de um culto problemático. Próximo a ele havia diversas pessoas ocupando o mesmo corpo, de forma que era impossível pesquisar qualquer informação sobre elas. No centro do cômodo, um cadáver de membros quebrados e pescoço esmagado, caído no chão igual um saco de pano. Reconheceu como Nicolas — já o pesquisara antes —, um homem um tanto estranho. O corpo do morto debatia-se, como se em uma convulsão, e sua cabeça de repente se desfigurou, ganhando a forma de uma cobra. O resto do corpo mudou mais rápido ainda, as pernas desapareceram, os braços multiplicaram-se por todo o tronco, que se alongou por muitos e muitos metros. Os olhos juntaram-se, formando um único globo grande e arregalado no topo da cabeça de réptil. E esse olho moveu-se, fitando Magno, e a cobra sorriu com os estranhos dentes humanos.

O cultista deu um passo para trás, com uma expressão estupefata no rosto.

— Por que não usa seu poder em mim? — perguntou o originador, fazendo seu alvo recuar novamente. — Essa é a diferença entre nós: eu estou disposto a abandonar tudo pelo meu objetivo, enquanto você se prende ao que não deveria. É fraco.

O corpo do predador preparou-se para um bote. Magno foi mais rápido, retirando uma pílula dourada do bolso da calça e engolindo-a. Desapareceu antes do ataque da cobra, e não demorou muito para as diversas pessoas desaparecerem também.

O originador olhou em volta. As paredes daquele lugar não mais pertenciam à sala de estar onde estavam antes, agora eram todas de metal, revestidas de ferrugem aqui e ali. Encontrou uma passagem circular e atravessou-a com o enorme corpo de quase 100 metros, usando as mãos para se arrastar como se não soubesse se locomover como uma cobra. Um predador muito estranho, ciente demais de si. Daria um nó no estômago de qualquer um que o visse.

Ele percorreu a extensão da sua nova moradia, vagando por salas e mais salas, muitas com canos de metal saindo pelas paredes e dificultando a passagem, mas o originador persistiu. Aos poucos, parou de usar os braços para se arrastar e passou a rastejar como o animal que parecia. Cessou o movimento somente quando chegou a uma sala sem saída.

Talvez fosse esperar ali, tornar aquela a sua sala e aguardar a chegada de vítimas, mas não. Começou a bater a cabeça na parede com pancadas que faziam o território tremer e o coração gelar. A cada impacto, o metal amassava e rachava. Além disso, sentia o território diminuir cada vez mais. De alguma forma, o predador estava destruindo sua própria morada. Por quê? Pietro sentiu os músculos retesarem com a pergunta.

A cobra bateu a cabeça na parede uma última vez e um buraco surgiu no lugar. O originador atravessou sem hesitação, emergindo em meio a uma rua larga o suficiente para quatro vias de carro, mas que agora era ocupada inteiramente pela criatura. Buscar por informações revelou que era algum lugar no centro de Porto Alegre, não arriscou ir atrás de mais dados para não se distrair dos acontecimentos que se desenrolavam.

A monstruosidade seguiu pela avenida, indo em direção ao Mercado Público. Os poucos transeuntes naquela hora de madrugada mal tinham tempo de entender o que se passava, bastava enxergarem o originador para que uma cobra menor se materializasse próximo a eles, os atacando e enrolando-se no corpo das vítimas. Restava aos humanos ficarem caídos no chão, sentindo a dificuldade em respirar enquanto o coração batia cada vez mais rápido. Nem a morte era certa, alguns ainda se tornavam predadores antes de perderem a consciência.

Antes de chegar ao prédio do Mercado Público, a cobra virou de repente, e aproximou-se de um prédio inacabado nas proximidades. Usando o corpo comprido e as mãos que tinha ao longo de sua extensão, subiu a construção pelo exterior. De alguma maneira, o prédio ganhava andares conforme o predador o escalava. Construção e aberração cresceram até que estivessem a quase mil metros do chão. Quando estava no topo, a criatura gritou.

A garganta de Pietro secou e sentiu mais um arrepio percorrendo seu corpo. Ao buscar por informações, soube que diversos outros originadores se descobriam capazes de quebrarem as barreiras de seus territórios e criavam moradas em nosso mundo.

Pietro removeu os fones de ouvido e parou de olhar para a tela do celular. Guardou tudo no bolso e saiu daquele território sem dono, voltando para casa. Os predadores evoluíram e pelo ritmo em que se desenvolviam, logo não restariam muitos locais seguros no mundo.

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