- Guilherme Lopes Lacerda
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Predadores: A Obsessão - Capítulo 41
Bárbara, Fernando e Dominique lidam com a invasão dos predadores
No capítulo anterior, Magno foi de encontro a Nicolas. Após um embate, Nicolas se transformou em um predador e conseguiu atravessar a barreira para entre seu território e o mundo real.
Agora, Fernando, Bárbara e Dominique, ainda exaustos do último território, precisam lidar com uma súbita invasão de predadores.

Não conseguia dormir, nem ao menos era capaz de fechar os olhos, apenas observava a programação da madrugada na televisão muda. Tentou não pensar no amanhecer, mas era impossível, ele chegaria independente de sua vontade. Como explicaria no escritório o envelhecimento súbito? Conseguiria disfarçar com maquiagem? Quase riu. Mais de vinte anos perdidos, e sua cabeça teimava em orbitar em torno do trabalho. Que vida de merda.
Saiu do sofá e rumou até a cozinha, onde encheu um copo com água da torneira. O vidro tremia em suas mãos e não soube dizer se era algum efeito da idade ou nervosismo. Tentou firmar a mão, aumentar a força e parar de chacoalhar, porém apenas piorou. Em um urro misturado com um soluço de choro, atirou o copo contra o azulejo, vidro e líquido se espalharam pela parede e chão.
Deu tudo de si para sair daquele lugar terrível, e sentiu que passou a entender menos do mundo do que antes. Predadores eram pessoas. E daí? O que fazer com essa informação? Como vingar Igor? Como destruir o culto da justiça com isso?
Respirou fundo e saiu da cozinha, seus pés a levando para o quarto, e então de volta para a sala. Andou de um lado a outro, tentando se acalmar. Perderam Fernando, ela conhecia bem o rosto de alguém que desistia. Ele era inteligente, afinal de contas.
Nicolas nunca fora confiável, mas continuar ao lado dele estava fora de cogitação. Poderia tentar algo somente com Dominique, mas duvidava que a idosa fosse largar do engravatado.
Sobrava apenas agir sozinha, como deveria ter feito desde o início. Poderia ir para qualquer lugar que já tivesse estado usando o farol como ponte, seria fácil descobrir informações dos cultistas, assim como seria fácil roubar os recursos de que precisasse. Sim, sozinha não precisaria se preocupar com ninguém.
Seus pensamentos e pés foram interrompidos quando alguém bateu à porta. Com um pouco de receio, checou o celular e viu que passavam poucos minutos das três horas da madrugada. Caminhou devagar e observou através do olho mágico, enxergando dois policiais do lado de fora. Um deles estava próximo à porta, e o outro um pouco mais afastado. A expressão taciturna e a postura tensa revelavam que não estavam ali só para conversar.
Pensou no copo quebrado, mas pelo amor, já ouvira vizinhos urrando madrugada adentro e nada da polícia, imagina um copo. Não, a única outra possibilidade era uma pela qual Bárbara já vinha se preparando, apesar de tentar esconder. Ali, do outro lado de sua porta, estava a consequência por sequestrar Maurício. Mas como tinham descoberto? Será que alguém na polícia sabia dos territórios? Será que havia dedo dos cultistas naquilo?
Por um ínfimo instante, pensou em se entregar. Seria tudo tão mais fácil se parasse de resistir e aceitasse. Mas ela não podia, e não era por Igor, ou pelas demais vítimas, era por si.
Antes que qualquer decisão pudesse ser tomada, seu corpo tremeu com um grito que passou pelo apartamento, deixando para trás a sensação de enjoo que somente um predador era capaz de transmitir. Por instinto, tentou fugir para o farol, mas o transporte não ocorreu. Bateram à porta, mais forte dessa vez. Coração e mente aceleraram em um esforço conjunto para entender o ocorrido. Só ela tinha ouvido o grito? Era bem possível.
Observou os policiais, pensando em como ganhar tempo, em quais mentiras inventar e como justificar uma mulher de vinte e seis com cara de cinquenta e poucos. Qualquer desculpa elaborada desapareceu ao ver os agentes da lei passarem de humanos a monstros. Suas fardas mantinham a coloração bege, porém o tecido pulsava, subia e descia como se fosse feito de carne, a pele recebeu uma tonalidade preta quase brilhante, mas a maior mudança foi a cabeça, substituída por um enorme globo ocular que fitava a porta.
Bárbara recuou diante da visão dos predadores. Não estava preparada para outro confronto, era cedo demais. Outra batida na porta. Mais outra. E então uma pancada que arrombou a entrada, quase arrancando-a das dobradiças. Os policiais predadores não perderam tempo com apresentações e entraram atirando.
Ficou paralisada diante dos tiros, ainda tentando compreender o que se passava, e o corpo incapaz de mover-se mais rápido que os projéteis. Dor explodiu em seu crânio e peito, um sofrimento que sentiu tantas vezes antes e agora vinha para matá-la.
A jaqueta, fria em seu corpo desde quando voltara, aqueceu-se com as asas flamejantes nas costas. Bárbara vivia, seu vestígio de alguma maneira funcional no mundo humano.
Saraivadas voaram em sua direção, atingindo pontos vitais, mas deixando pouco mais do que fendas e dor em seu corpo. O olhar da motoqueira focou-se nos inimigos à frente. Eram nada mais que predadores e sabia o que fazer a eles. Deixou a jaqueta rugir, o líquido vazar e arrebentar seus arredores.
As criaturas foram eliminadas, seus corpos desfazendo-se diante da ira exposta. Bárbara se inclinou para frente, respirando pesado e apoiando as mãos nos joelhos. Sobrevivera, mas não havia nenhum sentimento de vitória enquanto seus olhos esquadrinhavam o apartamento destruído. Esqueceu-se de direcionar seu ataque, mas, mesmo assim, não esperava aquele feito.
Tudo na sala estava jogado, eletrônicos foram quebrados, móveis foram destruídos e o pior, a própria estrutura do local estava danificada. Sua explosão danificou chão, paredes e teto, muito mais frágeis na realidade do que em territórios. Os olhos de Bárbara se arregalaram enquanto ela ouvia um som que só pode caracterizar como a queda de um gigante. No segundo seguinte, o prédio desabou em sua cabeça.
Mesmo tentando manter-se firme, não teve apoio. Seu andar também desabou, indo em direção ao térreo e, sem qualquer ponto para manter os pés, Bárbara foi junto. De um segundo para outro não havia mais luz, também não havia ar, somente poeira e o peso dos escombros sobre si.
Sua única parca fonte de iluminação era o próprio corpo, cheio de fendas vermelhas vazando uma luz fraca aos arredores. Mesmo assim, não enxergava nada além de destruição. Incapaz de mover mais que um dedo, só lhe restava deixar o vestígio agir mais vezes. O fluído vazou e explodiu, movendo os destroços e reduzindo-os a pó. No entanto, não foi o suficiente para se libertar por completo.
Repetiu o processo mais vezes, estourando e avançando alguns centímetros em uma direção que esperava ser o final daquele pesadelo. Arrastou-se pelos entulhos com a fortitude dos desesperados, sentindo seus esforços serem recompensados quando enfim enxergou um fiapo de luz.
Ao emergir, engatinhando para longe da construção demolida, descobriu que haviam mais problemas. Enxergou ao longe um enorme prédio com uma cobra enrolada próxima a seu topo. No entorno de Bárbara, pessoas corriam e gritavam, fugindo de aberrações com apenas um olho em seu corpo. Muitos eram capturados, derrubados, e então devorados inteiros por bocas enormes. Após a refeição, os predadores se deitavam no chão e paravam de se mover. Não havia ninguém para ajudá-la, e pior, não havia ninguém para resgatar as pessoas que ela condenou.
Bárbara arriscou olhar para trás, enxergando seu prédio destroçado. Ouvia gemidos e gritos por ajuda no meio da destruição. Levantou-se cambaleante, tiraria aquelas pessoas de lá, salvaria elas. Porém, um passo na direção dos escombros fez seu joelho falhar e ela deu de cara no chão. Seu corpo estava mais fraturado que nunca, com fendas atravessando de lado a lado e criando seções semitransparentes. Pela primeira vez se perguntou qual era o limite de seu vestígio, e o que aconteceria ao chegar nele. Teve certeza que descobriria se tivesse que usá-lo mais uma vez. Além do mais, ela era resistente, mas não forte. Precisaria de uma ajuda que não viria em meio ao caos e morte.
Cerrou os punhos, mordendo um lábio que não sangrou, apenas rachou mais. Lágrimas caíram de seus olhos enquanto tomava a decisão mais desgraçada de sua vida, uma que nunca esperava ter que tomar. Aproveitou que boa parte dos predadores no local já encontrara uma vítima, e então caminhou para longe do prédio, procurando um lugar seguro e deixando para trás as vidas que ela mesmo sentenciou à morte.
***
Mesmo não querendo, mesmo tentando se afastar deles, foi impossível não acordar pensando nos predadores, principalmente por sentir que entrara em um território. Levantou-se da cama com um grito e acendeu as luzes do quarto, vendo tudo em seu devido lugar.
— O que foi? Aconteceu alguma coisa? — perguntou Gabriel, tão rápido para despertar quanto o namorado.
Fernando correu para a sala e ligou as luzes. Tudo igual. Fez o mesmo na cozinha, banheiro e garagem. Normalidade pintava os ambientes, mas a sensação de perigo não o abandonava. Estava prestes a sair na rua quando uma mão pousou em seu ombro.
— Fê! O que foi?!
— Tem algo muito errado. — Fernando se virou. — Sinto como se estivéssemos perto de predadores, como se estivessem por aqui.
— Tem certeza? Não foi só um pesadelo? — Gabriel desceu a mão pelo ombro, passando pelo braço e chegando até a mão.
Poderia ser? Além de velho, ficava insano também? Acordaria todos os dias em pânico? Por que não conseguia tirar da cabeça a ideia de que algo mais estava acontecendo? Precisava confirmar.
Foi até a rua, ouvindo atrás de si os protestos de Gabriel. Olhou em volta, mais uma vez vendo que tudo estava normal. Quase se virou para o namorado, prestes a lhe dizer que tinha razão, que era tudo imaginação, mas então olhou para o oeste, em direção ao centro da cidade. A madrugada estava com o céu limpo, permitindo uma boa visão do horizonte, e foi assim que viu um prédio se agigantar em uma velocidade espantosa. Alguma coisa escalou a construção, enrolando seu corpo ao redor do edifício. Difícil identificar o que era de tão longe, mas Fernando sabia muito bem, pois tudo no seu corpo gritava para que fugisse o mais rápido possível.
Olhou na direção de Gabriel, esperando ouvir que estava ficando maluco, que poderia descartar aquela visão como uma alucinação, mas o namorado olhava perplexo para o horizonte. Era real, estava ali com eles.
Um grito do enorme predador chegou até os dois. Fernando tonteou e só não caiu por auxílio de Gabriel.
— O que é isso? É… uma daquelas coisas? — perguntou o namorado.
— É — respondeu Fernando, sentindo a força voltar às pernas. — Precisamos fugir daqui o mais rápido possível.
— Por quê? O que está acontecendo?
— Não sei. — Olhou para a moto, em seguida para Gabriel. — Sua família fica em Alvorada, certo? — Gabriel assentiu. — Então vamos para lá depois, vou passar na casa da mãe primeiro.
Fernando subiu na Honda, orientando Gabriel a pegar a mochila de entregas e qualquer objeto que servisse de arma. O namorado em seguida abriu os portões da garagem e subiu na garupa. Os dois dispararam pelas ruas do bairro.
Mais gritos surgiram, dessa vez de humanos. Aqui e ali Fernando enxergava predadores saindo de casas, ouvia pedidos de ajuda e ignorava cada um deles. Se tivesse que auxiliar todos, jamais chegaria a tempo de salvar sua família.
Passaram ao lado de um adolescente, correndo para longe de uma criatura com torso magro e braços humanoides longos, da cintura para baixo o corpo era como de uma cobra, cheio de escamas pretas e brancas, e sua cabeça era um globo ocular enorme. Apesar de se arrastar com os braços, a distância entre ele e sua presa diminuía. Fernando cometeu o erro de olhar para trás e enxergou o menino correndo com lágrimas nos olhos, usava uma camiseta velha e uma bermuda de tactel. O rapaz notou o olhar do padeiro e estendeu a mão em sua direção enquanto gritava por ajuda.
Não houve um fluxo de pensamentos que o levassem a essa decisão, quando deu por si, Fernando já tinha parado e saía correndo na direção do predador e do garoto.
— Para! O que está fazendo? — Gabriel gritou atrás de si.
O predador chegou perto de seu alvo e, com um tapa nas pernas, derrubou-o de cara no chão. A monstruosidade subiu por cima das pernas do garoto enquanto uma boca repleta de dentes humanos se abria no peito da criatura. Fernando urrou para chamar a atenção, mas foi ignorado. O padeiro cerrou a mandíbula, vencendo os metros finais entre ele e o monstro, e acertou uma ombrada que lançou os dois ao chão e libertou o adolescente.
Algo estalou em seu ombro enquanto caía e mover o braço direito causou-lhe pontadas de dor. Enquanto Fernando ainda estava no chão, o predador se recuperou e focou seu enorme olho castanho no humano, seu novo alvo, sua nova presa. Com agilidade, a criatura se aproximou e a boca em seu peito salivou com a expectativa de alimento.
Resistiu, tentando empurrar com seu braço esquerdo o ombro da criatura, manter aqueles dentes longe de si, mas o predador era mais forte e calou os esforços de Fernando com um soco quase casual no peito do humano. Outro estalo, desta vez mais alto, seguido de dor e pontos escuros na visão que quase fizeram Fernando desmaiar.
Antes que a criatura abocanhasse sua presa, um grito desesperado tomou conta do local. Subitamente, um martelo surgiu no campo de visão de Fernando e atingiu com tudo o olho do predador. A aberração recuou, e Gabriel continuou avançando, gritando e brandindo sua arma.
Desta vez, o predador interceptou o golpe, segurando o pulso do atacante antes que a orelha do martelo atingisse mais uma vez seu globo ocular. Com uma torção quase sem esforço, o pulso de Gabriel quebrou com um estalo, seguido do derrubar do martelo e do pé de cabra na outra mão. O homem não gritou pelo osso partido, em vez disso apenas observava o ferimento, os olhos arregalados e a boca aberta, paralisado.
A dor no peito e ombro de Fernando reduziu-se a um mero incômodo diante da cena de seu namorado sendo atacado. Ele ergueu-se, pegou um pé de cabra e lançou-se contra o predador, mirando no globo ocular que regenerava-se. De alguma forma, a criatura não tentou impedir os ataques que vinham em sua direção, e Fernando não deixou de aproveitar isso, fazendo chover golpes contra o olho.
A arma subia e descia, e logo o namorado estava ao seu lado, alternando golpes do pé de cabra com o martelo. Sempre que o predador tentava parar o golpe de Gabriel, Fernando lhe acertava e impedia qualquer resistência. A criatura parou de se mover, mas eles continuaram até não restar nada do olho além de uma massa disforme e gosmenta no chão, que não desaparecia como nos territórios.
Fernando olhou para Gabriel empunhando o martelo na mão esquerda enquanto a direita pendia em uma direção agoniante. Correu para a mochila largada ali perto e retirou um brioche, alcançando-o para o namorado.
— Coma!
— Mas tu vai…
— Coma!
Gabriel obedeceu. O efeito foi instantâneo, os ossos juntaram-se e logo o pulso estava funcional. Fernando, no entanto, segurou um grito de dor ao ter seu pulso quebrado, deixando escapar apenas um grunhido. Antes que Gabriel se apiedasse demais, o padeiro rumou até o garoto. Ainda estava deitado no chão, em choque desde o início do ataque, com uma poça formando-se entre suas coxas. Fernando não o culpava, inclusive se surpreendia de não ter se mijado também.
— Algum ferimento? — perguntou Fernando entredentes.
Sem resposta.
Gabriel se agachou perto do garoto e balançou seu ombro.
— Ei, guri!
Isso pareceu despertá-lo seja lá de qual sonho estivesse, seus olhos focaram-se nos dois adultos.
— Teu nome? — perguntou Gabriel.
— Vagner — respondeu o adolescente, se demorando em cada sílaba.
— Algum ferimento?
— Não.
— Seus pais, onde estão? — disse Fernando.
Os olhos castanhos do garoto marejaram e sua mão ergueu-se, um dedo apontando na direção do predador que acabaram de enfrentar. Fernando fechou os olhos, respirou fundo e abriu-os. Não tinha como consolar ele, não naquele caos, não quando, há algumas dezenas de metros, outras mortes ocorriam e eles ignoravam.
— Preciso que me ouça — começou, a voz ganhando confiança a cada palavra. — Precisaremos de carros e armas, pode ser martelo, pedaço de pau, qualquer coisa que dê para bater. Vai nos ajudar?
O adolescente assentiu devagar.
— O que estamos fazendo agora? — perguntou Gabriel, hesitando nas palavras.
— Salvando essa gente.
***
Mais uma vez, Dominique estava sozinha no farol. Saíra pela janela e sentara-se no teto em forma de cúpula, onde observou o mar escuro adiante, iluminado somente pelo luar refletido na água. Parecia que, quanto mais buscava sua liberdade, mais solitária ficava. Tinha certeza que Fernando jamais voltaria, Bárbara também não parecia inclinada a reaparecer quando se despediu, e Nicolas talvez até voltasse, mas não seria o mesmo. O território afetara todos os seus companheiros, e sem um vestígio capaz de manter seus corpos fortes, não durariam muito tempo na luta contra os predadores.
Queria estar se movendo, enfrentando inimigos, fazendo algo. A cada território, o tempo de espera tornava-se insuportável, e a adrenalina que sentia durante o confronto cada vez mais viciante. Talvez devesse explorar sozinha dali em diante, derrotar os originadores em ritmo acelerado e chegar mais perto de salvar as pessoas.
De repente, a estrutura tremeu e um vento quente veio do mar. Dominique se pôs de pé, ajustando seus olhos para enxergar o mais longe possível. Há vários quilômetros de distância, algo emergia da água. Mesmo tão longe, notou que era alguém alto, possuía cabelos pretos e compridos que caíam até as costas, a pele tinha um tom de bronze quase reluzente. Estava de olhos fechados e seu rosto possuía uma expressão serena, em seu torso nu havia uma tatuagem em formato de círculo no peito com ramificações que iam em direção às costas. Seus pés estavam descalços e um chanti completava o visual.
Dominique sentiu sua alma em conflito. Queria apenas ficar observando aquela pessoa de tão linda que era, mas também desejava estraçalhá-la, tamanho era o enjoo que o predador lhe causava. Entendeu que aquela presença era o que faltava nos outros territórios sem dono, e não era que o farol não possuísse um originador, ele apenas mantinha discrição. Antes que pudesse decidir qual rumo tomar, a criatura agiu. Esticou seu braço delgado com a mão aberta na direção de Dominique, como se lhe oferecesse ajuda, e então cerrou o punho.
De um segundo para outro, o cenário azul foi substituído pelo cinza escuro do asfalto. Dominique mirou seu entorno, tentando entender em que tipo de território fora jogada. Estava de noite e, ao seu redor, diversas casas protegidas por grades e, em alguns casos, cercas elétricas, estavam com os portões abertos. Espalhados pela rua haviam corpos humanos muito magros e ressecados, como se fossem múmias, e mais ao longe, descendo uma a inclinação, havia um grupo pequeno de pessoas afastando-se de onde Dominique estava. O corpo da idosa se retesou quando notou os predadores pairando um pouco acima da multidão. Como uma mola tensionada, lançou-se na direção das criaturas sem pestanejar.
Ao se aproximar dos inimigos, Dominique notou que seus corpos eram uma combinação de humano com inseto. O tronco e cabeça lembravam muito o de uma pessoa, mas as semelhanças paravam por ali. Das costas saíam duas asas compridas e diáfanas, os braços e pernas foram trocados por três pares de pernas insectoides revestidas de um exoesqueleto escuro. A cabeça possuía alguns tufos de cabelo, um par de olhos compostos onde antes ficavam os normais, a boca deu lugar a um par de mandíbulas de formiga e, entre elas, despontava o haustelo característico de um mosquito.
Dominique melhorou os músculos das pernas o quanto pôde e saltou. Esperava se chocar contra uma das criaturas, mas elas reagiram rápido e se afastaram o suficiente para evitar uma colisão, mas não o bastante para impedir que a idosa agarrasse a asa de um dos predadores e desse um puxão com toda a força.
A idosa aterrissou em pé e aguardou enquanto a monstruosidade fazia seu pouso errático. Mal tocara o chão e Dominique já estava sobre ela. Contrário do que esperava, o predador era ágil e difícil de acertar. Demorou uns bons segundos para atingir a lateral da cabeça com um soco, e ainda assim o esqueleto resistente da criatura aguentou o impacto.
Antes que pudesse desferir outro golpe, sentiu algo penetrando sua panturrilha direita. Olhar para trás revelou outro predador, com suas mandíbulas fechadas na perna da aposentada. Inúmeros inimigos sobrevoavam Dominique e alguns pousavam nos arredores. De um momento para outro, se tornara o alvo do enxame.
Precisaria de mais força, de mais resistência e de mais visão. Por sorte, seus inimigos já tinham tudo isso, então nem precisaria ser criativa. Replicou o exoesqueleto resistente dos inimigos, projetou os diversos olhos pelo seu corpo e elevou seus músculos ao limite do que sabia ser capaz. Girou para ficar de frente contra o predador que lhe agredia a perna, levantou o pé e baixou-o contra a cabeça dele. O golpe foi fatal, esmagando o crânio e espalhando a gosma roxa pelo entorno. Girou mais uma vez, focando-se no inimigo sem uma das asas e se impulsionando contra ele. Um gancho de direita foi o suficiente para finalizá-lo.
Mais e mais predadores chegavam e avançavam contra ela. Dominique sorriu e diminuiu a sensação de dor por todo o seu corpo, preparando-se para a longa noite que enfrentaria.
Ela lutou, matou e triunfou. Não soube dizer quanto tempo se passou desde o início do confronto, mas o sol raiava quando a última aberração morreu por suas mãos. Dominique ergueu os braços e um grito de vitória escapou por sua garganta, um triunfo que não foi apreciado por ninguém exceto ela. Mesmo com o corpo repleto de ferimentos, ainda se mantinha em pé, erguida apenas pela adrenalina e pela satisfação de estar no mundo humano e conseguir usar sua benção.
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