Predadores: A Obsessão - Capítulo 13

Bárbara e o grupo entram em um território repleto de ilusões

No capítulo anterior, Dominique, Fernando e Bárbara conversavam no farol enquanto aproveitavam um lanche feito pelo padeiro. Porém, no meio do evento, sentiram um novo território se formando e, junto de Nicolas, adentraram o perigo.

Desenho monocromático. O desenho é dividido em duas partes. A parte da direita mostra uma casa de madeira, com uma casinha de brinquedo no chão e parte de uma cama. Também há uma janela por onde se veem outras casas. Conforme se olha para o lado esquerdo, a casa desaparece e as paredes se tornam orgânicas, lembrando entranhas e o interior de um corpo animal. No centro da imagem há o número treze para indicar o capítulo.

Estava tudo ali, os brinquedos que se dividiam entre bonecas, caixas cheias até o topo com lego e até mesmo alguns quebra-cabeças. Havia sua cama também, o travesseiro com extremidades verdes e centro amarelo, a colcha estampada da Mulan e até mesmo o abajur na cabeceira.

Bárbara caminhou ao redor da cama, deixando a mão sentir a textura da colcha e a resistência do colchão. Um olhar para a direita revelou a janela do quarto. Saltitou até ela, subiu em um mocho para ganhar altura e olhou para o exterior. Dali tinha uma visão perfeita da rua, conseguia ver o chão de paralelepípedo, os vizinhos cujo filho tinha um cachorro peludão com quem adorava brincar, até mesmo Clara estava lá, em frente à casa de madeira. A idosa viu ela através do vidro e acenou. Bárbara, apesar de incomodada, retribuiu o gesto. Há quanto tempo não via dona Clara?

A mão parou. Exato, há quanto tempo não a via? Uma carranca formou-se em seu rosto. Dona Clara estava morta, um infarto mais de dez anos atrás. Ela tinha algumas opiniões fortes sobre as atitudes de Bárbara e, por ser amiga da família, achava normal expressá-las em quase toda ocasião. Recebendo as palavras ousadas da idosa e sem o apoio da própria mãe, Bárbara tornou a última conversa delas em uma discussão acalorada. Não houve conclusão, uma hora cansou de ouvir todo aquele desaforo e foi embora. Nem um dia depois e ficou sabendo da internação e morte da outra.

Olhou para trás, visualizando novamente o quarto. O local não era real, o verdadeiro nem existia mais. Não estava na casa onde passou a infância. A realização deste fato fez tudo parecer falso, o desenho de Mulan estava borrado e retorcido, seu rosto carecia de proporções corretas. Os brinquedos, na verdade, estavam quebrados e a tinta escorria pelo plástico.

— Não!

Um grito feminino ecoou pela casa inteira. Seus olhos percorreram o aposento até encontrarem a porta. Avançou até ela e abriu. A primeira coisa que enxergou foi a vermelhidão do lugar em que estavam. Era um corredor rubro, feito de um material que oscilava a cada respiração, com lâmpadas comuns que se veria em uma casa qualquer, mas cuja iluminação era fraca e deixava o ambiente à meia-luz.

— Voltou a si? — perguntou Nicolas.

Bárbara olhou para o restante do grupo. O líder estava como sempre, uma expressão neutra encarando-a. Fernando e Dominique se encontravam parados, os ombros encurvados e olhos arregalados. O queixo caído enquanto observavam o nada.

— O que aconteceu com eles? — perguntou ela.

— O mesmo que aconteceu com nós dois.

Bárbara chacoalhou Fernando, tirando-o de seu transe. Fez o mesmo com Dominique em seguida. Os dois pareciam tão perdidos quanto ela ao acordarem. Antes que pudessem fazer mais perguntas, o corredor se contraiu logo à frente deles, expandindo-se em seguida como se fosse um ser vivo respirando.

— Onde estamos? — perguntou Fernando.

Bárbara colocou a palma em uma das paredes. Sentiu o material ceder um pouco, mas ao forçá-lo não conseguiu empurrar mais. Tinha uma sensação quente ao toque, além de ter uma textura esponjosa. Afastou a mão, sentindo-a úmida. Estavam dentro de uma coisa viva.

— Ainda não sei, mas não descobriremos se ficarmos parados aqui. — Nicolas começou a caminhar. — Preparem as pílulas.

Seguiram pelo corredor, fazendo curvas, passando por bifurcações, subindo e descendo inclinações. Acabaram por chegar em uma parte que tinha janelas, do tipo normal que se veria em qualquer casa. Estavam no meio das paredes vivas e, ao chegar perto, vislumbraram o exterior escuro onde nada se via.

Enquanto observava o lado de fora, algo surgiu em sua visão. Era uma mulher alta, com cabelos cacheados castanhos e cara fechada. Usava uma jaqueta de couro com uma camiseta vermelha por baixo. Bárbara virou-se para Fernando, prestes a perguntar se o homem também estava vendo o próprio reflexo. Seus olhos não encontraram o colega, porém, enxergaram um cenário diferente.

— Tem certeza que quer isso? Vai ser bem longe.

Estava em uma sala de estar. Na sua frente via o sofá de três lugares coberto por uma manta branca tricotada. Logo ao lado do móvel estava o rádio que sua avó deixava ligado durante boa parte da tarde para trazer vida à casa enquanto cuidava das tarefas domésticas. Era um modelo usado, porém mais novo que o anterior, tocava tanto CD quanto fita cassete, apesar de que não usavam uma há anos.

Olhou para trás, deparando-se com o balcão onde ficava a televisão de tubo. A monstruosidade eletrônica ocupava metade da bancada, e de cada lado dela havia decorações variadas: alguns gatinhos de cerâmica comprados pela cidade, uma foto da avó com os dois filhos e três netos e uma estátua de Nossa Senhora Aparecida.

Poderia ficar capturando todos os detalhes do cômodo, lembrando-se de como já subira muito naquele balcão, de como uma vez tentara levantar a TV e achou que fosse morrer esmagada, ou de como estragou o rádio antigo por colocar massa de modelar em seu interior. Passou mais de uma década após cada um destes acontecimentos, mas as memórias estavam frescas.

— Oi? Está me ouvindo?

Virou a cabeça para frente, de volta à figura de sua mãe. Por algum motivo, ignorou-a até ali. Diziam que as duas se pareciam muito, mas Bárbara negava. O cabelo, apesar de cacheado, era mais claro na outra, os olhos castanhos na filha eram de um tom esverdeado na mãe. A altura, porém, era a principal diferença. Isabel era uma cabeça mais baixa.

— Estou ouvindo, só estava pensando — respondeu Bárbara. Ver a mãe ali, sentada e preocupada, lembrou-lhe do que estavam discutindo.

— Será que tu não consegue algo aqui? Mesmo que seja em outra área…

— Mesmo que eu consiga, ficar no interior não tem futuro. Ainda mais se eu pegar algo fora da minha formação.

— Mas…

— Não quero passar o resto da minha vida fazendo algo que não gosto. Ir para a capital é minha chance! E diferente de outras pessoas, não vou sem um emprego definido.

— E se te demitirem logo em seguida? E se quiserem se aproveitar de ti lá? Vai estar sozinha, sem família para te dar uma mão.

— Eu sei me virar! — disse Bárbara, o tom de voz mais alto. — E até parece que estar aqui vai me proteger de alguma coisa.

Não protegeu a mãe de ser abandonada pelo marido, tampouco ajudou quando começaram as brigas diárias com o namorado. Dois relacionamentos fracassados em que ninguém, familiar ou amigo, moveu um dedo para ajudar. Não era algo que jogaria na cara dela sem um bom motivo, mas odiava aquela preocupação toda. Pareciam querer contê-la a todo custo. Sempre foi assim.

Mas no fim Isabel até que tinha razão. Quando se mudou, seu único conhecido próximo passou a ser Igor. Espera? Como sua mãe poderia ter razão se nem se mudou ainda? Sentiu algo se movendo na visão periférica e observou o cômodo com o canto do olho. As paredes não eram de madeira e sim daquele material bizarro e vermelho. O chão não era firme, oscilava e era macio. Tivera aquela conversa antes, mas nada daquilo era real.

Trincou os dentes enquanto via o sofá e a mãe desaparecem diante de seus olhos, dando lugar a Fernando, mais uma vez com a expressão distante. Ao seu lado, Nicolas balançava a cabeça.

— De novo? — rosnou Bárbara.

— Sim — respondeu o homem. — Parece ser a forma que esse território funciona.

Balançaram os dois colegas, retirando-os da ilusão.

— Espero que isso não aconteça mais vezes — disse Fernando.

— Vai acontecer — falou Nicolas.

— Por quê? — perguntou Dominique. — Não é como se isso fizesse muito mal a nós, além de nos fazer perder alguns minutos.

— Bem, prefiro isso que o metrô. — Fernando olhou em volta. — Não tem nenhum monstro nos atacando pelo menos.

— É um originador novo, talvez seja só isso do que é capaz de fazer. — Nicolas coçou a têmpora. — Vamos continuar, talvez encontremos algo que nos ajude a eliminar o predador em uma próxima vinda.

O grupo voltou a prosseguir pelo corredor. Em alguns minutos de caminhada, apareceram diversas passagens à esquerda e à direita. Cada uma levava para uma espécie de cômodo.

— E aqui são as salas de reunião — disse a voz da mulher que os guiava. Ela trabalhava no RH da empresa e era a responsável por realizar a integração dos novos empregados, ou como gostavam de chamar, colaboradores. O grupo de Bárbara era pequeno, apenas cinco jovens tão nervosos quanto ela com o primeiro dia de trabalho.

A motoqueira cerrou os dentes, reconhecendo a cena como uma ilusão. Já tinha passado por duas, não seria afetada por uma terceira. Avançou no meio do grupo, empurrando seus novos colegas e ultrapassando a moça do RH. A ilusão se desfez, e Bárbara enxergou o verdadeiro propósito das enganações. À frente dela estavam cinco predadores.

O corpo inteiro era vermelho, lembrando uma ferida inchada, da cintura para baixo não haviam pernas, apenas uma massa disforme que se conectava ao chão como se fossem protuberâncias. O tronco tinha um formato mais humano e aparência muito magra, mas sem mostrar costela alguma. Os braços eram longos e estranhos, quase tentaculares. Mal conseguiu identificar o rosto deles, apenas notou que tudo parecia deslocado. Os olhos estavam espaçados demais, um próximo ao queixo e outro perto do topo da testa. A boca estava em algum lugar entre eles, e não se via o nariz ou as orelhas.

Estavam dispostos de forma estranha, mas antes de chegar em uma conclusão, Bárbara abandonou os pensamentos, notando que era a única desperta. Se virou, ficando na frente de Fernando e empurrando os outros dois para os lados. Era injusto que pudesse proteger só um, mas o padeiro era prioridade. Os predadores atacaram, esticando seus braços para frente e mirando nos humanos. Algo disparou de dentro dos membros, projéteis pequenos, porém, considerando a distância, poderosos. Mesmo com sua resistência, Bárbara não estava em posição para manter o equilíbrio, e quando sentiu o impacto em suas costas, foi jogada para frente junto da dor dispersa que invadiu suas paletas.

Fúria preencheu seu coração e foi bombeada por suas veias. A dor se tornou um estimulante perigoso enquanto ela se levantava em um pulo e virava-se na direção dos predadores. Os cinco concentraram os braços nela e lançaram outra saraivada. Desta vez estava preparada e manteve-se firme enquanto era atingida pelos inúmeros projéteis. Seu braço, tronco, barriga e pernas queimaram como se estivesse em uma pira. Ela gritou enquanto as rachaduras se espalhavam por todo o corpo.

Disparou na direção dos inimigos enquanto era alvo de uma terceira onda de ataques, mas não parou. Dois dos predadores pareciam de alguma forma agachados, ainda que não tivessem pernas ou joelhos, mas sua forma era mais baixa que os demais e esse foi o primeiro pensamento na cabeça de Bárbara. Os outros três estavam em pé logo atrás. Era uma formação estranhamente organizada para monstruosidades como aquelas.

Antes que pudessem atacar de novo, cordas surgiram do teto e enrolaram-se no corpo dos dois da frente, puxando-os para cima com violência. A quarta saraivada veio em seguida, atingindo os corpos recém-erguidos. Dominique passou pelo seu lado como um raio, dando a volta nos corpos suspensos e chutando um dos predadores na direção de Bárbara. Ele deu um encontrão nos outros predadores, derrubando parte de seu braço no caminho, e caiu perto da mulher raivosa. Bárbara chutou a cabeça da aberração com toda a força que tinha. Seu corpo reagiu ao ataque, o líquido vazou das rachaduras, passando pela roupa e bota, acumulando-se na ponta do calçado assim que se conectou com a estranha carne da criatura.

A explosão desta vez foi mais focada, com a fúria direcionada toda ao predador. Seu vestígio pareceu reconhecer o objetivo singular e nem ofereceu tudo que tinha. O tronco do inimigo rebentou em sangue, o chão logo à frente deformou-se, afundando um pouco. Bárbara olhou para a frente, tão cansada que poderia cair de joelhos ali mesmo. Dominique dera conta dos outros dois. Estavam seguros por enquanto. Baixou a cabeça, exausta e sentindo o cérebro ribombar no crânio.

Se deu conta de algo estranho no chão. Não era parte do braço que a criatura derrubou? Se aproximou do membro, notando que não era vermelho, e sim cinza. Dois canos longos juntando-se em uma empunhadura, um gatilho embaixo. Uma arma. O coração bateu mais rápido enquanto olhava para o predador que matara. Não havia como identificar nada do tronco, agora um monte de carne espalhada pelo corredor, mas agora haviam pernas, pernas bem humanas.

As entranhas se apertaram, tentando parar seja lá o que estivesse tomando conta de Bárbara. Olhou na direção dos outros predadores. Os enforcados foram baixados e agora estavam jogados no chão. Suas formas bem mais fáceis de identificar. O tronco era humano, coberto por uma espécie de bata branca com um símbolo no peito e suja de entranhas. E o rosto, não havia como confundir, eram pessoas. Não tinham mais feições deslocadas. Bárbara olhou para frente, encontrando o olhar perplexo de Dominique. De repente, sobreviver tornou-se secundário, nem sequer pensava em avançar no território.

Fernando passou por ela e se ajoelhou ao lado dos corpos. Ele abriu a mochila e tentou forçar o pão goela abaixo nos cadáveres enforcados.

— Bárbara! Me ajude aqui! — gritava o homem. — Temos que salvar eles, eu acho que consigo reviver. Droga!

Ela não se moveu. Viu Dominique passando pelos dois que matara, ambos com o crânio afundado por golpes poderosos. Notou os olhos sérios e focados, revelando o ardor da alma dela. Queria sentir o mesmo, mas não conseguia, seu coração ocupava-se com algo diferente. Virou-se para sua vítima, e era isso que eram, vítimas. Não inimigos, tampouco predadores. Não conseguiu tirar o olho do corpo, era impossível ignorar o peso do que fizera. Atrás de si, os choros e lamentos de Fernando pareciam vir de outro mundo, chegando até ela como um eco, uma transmissão de rádio.

— Isso é sua culpa! Você deveria ter notado!

Olhou na direção de Dominique e Nicolas. A idosa discutia com o líder deles, ignorando o fato de que o braço do homem estava pela metade, o antebraço perdido em algum lugar no chão, desprendido do corpo durante a leva de tiros.

— Você deveria ser o salvador dos humanos! Deveria ajudar todos, mas olhe… olhe o que você nos obrigou a fazer.

Nicolas apoiava-se na parede, de alguma forma conseguindo manter-se em pé e aguentar as palavras atiradas contra si. Ele pareceu notar o olhar de Bárbara e encarou-a. Um frêmito percorreu o peito dela enquanto notava a ausência de emoção naqueles olhos.

— O território está nos afetando — disse ele, passando por cima da raiva de Dominique. — Precisamos sair. Dê uma pílula a Fernando, eu me viro por aqui.

Uma ordem, uma direção. Claro! Aquele peso devia ser coisa do território, todos se sentiriam melhor quando voltassem para o farol. Saindo do torpor, Bárbara caminhou até Fernando. Ele balançava o corpo de um dos mortos, pedindo que acordasse, que levantasse. Lágrimas escorriam pela sua face.

— Precisamos sair — disse ela.

Fernando não a ouviu, apenas continuou lamentando. Bárbara segurou os pulsos do homem e puxou para si, forçando-o a encará-la. Que erro. Ele estava quebrado, soluçando a morte de pessoas que nem conhecia. Não deveria sentir o mesmo? Como conseguia ignorar o peso do que fizeram?

— Me solte! Você é um monstro! Todos nós somos! — O homem desvencilhou-se.

Respirando fundo, Bárbara soube o que precisaria fazer. Empurrou Fernando e, assim que ele caiu, subiu em sua cintura. Em meio a gritos e tentativas de escape, pegou a pílula e enfiou na boca dele, tapando-a com a mão. O homem não deixou barato e a acertou como pôde. Bárbara aguentou cada golpe, não sentia a queimação e raiva que vinham quando era atingida. Não sentia nada. Quando Fernando engoliu a pílula, ela pegou sua própria e fez o mesmo. Queria nada mais que sair dali e voltar para o farol.

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