Predadores: A Obsessão - Capítulo 21

O grupo encontra o originador do território do hospital

No último capítulo, Nicolas e Bárbara vagaram sozinhos pelo hospital, e no fim conseguiram se reunir novamente com Dominique no andar da Recuperação.

Agora, precisam descobrir se Fernando e Igor estão no mesmo andar. E, se não estiverem, onde irão encontrá-los.

Desenho monocromático. O desenho mostra um rosto humano glabro saindo de um corpo peludo e grande. No rosto, onde deveria ficar o nariz e os olhos, há um apêndice similar ao de uma toupeira-natiz-de-estrela, de onde despontam diversos tentáculos finos e compridos se espalhando em diferentes direções. No canto inferior esquerdo há o número vinte e um para indicar o capítulo.

Deixou os dois jovens liderarem a busca durante algum tempo. Apesar das palavras, sua cabeça ainda estava no quarto, queria ficar mais um tempo lá. Sabia muito bem da verdade: Joaquim morrera no mesmo acidente que tirou suas pernas. Não fazia ideia de como, mas aquele ali era apenas uma cópia, uma sombra. Mas que sombra calorosa era essa!

Havia passado por uma dezena de quartos quando conseguiu se recompor e andar ao lado de Bárbara. Não ousou conversar, em vez disso, focou em entender aquele lugar. Predadores não eram seres que se alimentavam de pessoas? Por que então criar o hospital? Por que criar aquele lugar tão agradável e tentador? O que estavam falhando em ver?

Encontraram Fernando dentro de um quarto cujo nome do paciente era Cleber. Não era muito difícil imaginar o homem mais velho como o pai do companheiro, tinha por volta de cinquenta anos e dava para ver muitos traços de semelhança. Os mesmos braços largos, a pele morena, o queixo quadrado, mas as características mudavam a partir daí. Os olhos eram duros e ele parecia ser do mesmo tamanho de Nicolas.

— Vocês estão aqui também — disse Fernando ao vê-los, um sorriso de criança tomando seu rosto. — Entrem, venham ver meu pai.

Bárbara trocou um olhar com Dominique e, após um momento de hesitação, todos entraram.

— Não se acanhem, não tô tão mal assim pra quebrar igual vidro — disse o pai, gesticulando para que se aproximassem.

— Também não se faz de durão, acabou no hospital de qualquer forma — replicou o filho.

Dominique respirou fundo e se aproximou, a única a fazer isso. Sabia de luto melhor que os outros dois, era a mais adequada para lidar com a situação.

— Tu deve ser a tal Dominique — comentou Cleber. — Agradeço pela ajuda ao meu filho.

— Eu que devia agradecer. — Olhou para Fernando por um momento. — Seu filho é um homem incrível e gentil, estaríamos com muitos problemas se não fosse por ele.

Cleber inflou o peito ao ouvir isso e abriu um sorriso de orelha a orelha.

— Ele sempre foi assim, o orgulho da família.

Os dois trocaram mais algumas palavras. A aposentada sabia bem o que precisava dizer em seguida, mas não conseguia. Seu foco estava em falar com Cleber. Precisava usar alguma inconsistência ou fato estranho que o pai dissesse para provar que era apenas uma cópia. Sabia, no entanto, que não encontraria. Era a melhor das ilusões, perfeito e igual ao original em cada sentido.

— Incrível, né? — disse Fernando. — Depois de anos eu o encontro aqui.

O olhar da idosa rumou até o rosto iluminado do companheiro. Não queria formar as palavras necessárias, era quase crueldade. Os dizerem chegavam até a boca, torciam-lhe a língua, então eram engolidos de volta, arranhando a garganta. Olhou para Nicolas, esperando que o líder do grupo a ajudasse nem que fosse com a mais crua das frases, mas não foi dele que veio o auxílio.

— Seu pai está morto. — A expressão de Bárbara era fechada e o corpo inteiro estava retesado, como se estivesse prestes a levar um golpe.

Como espelho sendo quebrado, a expressão de Fernando mudou. Seu sorriso resplandecente desapareceu e uma escuridão de reconhecimento tomou conta.

— Do que está falando? — Fernando baixou o tom de voz. — Ele está ali.

— É uma imitação — disse Nicolas, em voz alta. — Ele está morto, igual todos os pacientes nesse hospital.

Fernando encarou Cleber e foi encarado de volta. Não trocaram uma palavra sequer, mas, de repente, a pele de seu pai ficou mais pálida, a íris passando para um tom esbranquiçado.

— Vocês estão errados — sussurrou Fernando. — Ele está aqui, vivo! Não entendem?!

— Eu falei com meu falecido marido há pouco — interveio Dominique. Seu tom de voz era calmo e baixo, quase como se estivesse lidando com um animal assustado. — É muito parecido e pode ser que até seja seu pai, mas ele se foi. Os vivos não podem ficar presos aos mortos, por mais doloroso que seja, devemos deixá-los irem e descansar.

O olhar de Fernando percorreu o rosto de Dominique, Bárbara e por fim Nicolas. Sua expressão e postura mudaram. Não era mais um animal assustado, parecia encurralado, capaz de usar unhas e dentes para sair vivo.

— Então eu posso curar feridas impossíveis. Com. Um. Pão! Uma velha é mais forte que halterofilistas, uma tem um corpo igual pedra e o outro cria cordas do nada, mas meu pai não pode voltar à vida?! — As palavras eram cuspidas. — Hipócritas! Vão à merda e continuem com essa aventurazinha idiota! Eu ficarei.

— Conseguem tirar ele daqui? — perguntou Nicolas.

Dominique ficou relutante, mas assentiu mesmo assim. Não podiam abandonar Fernando, mas nenhum deles era tão próximo a ponto de argumentarem e enfiarem a razão na cabeça do homem.

Foi um processo lento e cuidadoso na medida do possível. Bárbara e Dominique o seguraram e arrastaram, em meio aos gritos, choro e ameaças até o lado de fora do quarto. Socos e pontapés foram desferidos contra as duas, mas elas não revidaram. Quando o soltaram a alguns metros da porta do quarto, caiu de joelhos no chão, o olhar fixo em algum ponto na parede.

Nicolas saiu por último e fechou a porta. No segundo seguinte, o padeiro pulou no pescoço do engravatado, a fúria voltando aos seus olhos. Não fosse Dominique impedir, imaginou que os dois estariam se engalfinhando no chão. Foram necessários alguns segundos para que Fernando se acalmasse e desabasse novamente, desta vez com uma expressão de derrota. Ficou assim alguns minutos, até que começou a soluçar.

— Eu não acredito — disse Fernando, limpando as lágrimas com as mãos. — O que aconteceu comigo? Eu estava… Eu queria…

— Culpe o território, não a si mesmo — disse Nicolas.

— É cara, não é sua culpa. Esse lugar que é estranho — disse Bárbara, se agachando e afagando o ombro de Fernando.

— Melhor encontrarmos Igor e sair logo daqui — pediu Dominique, quanto mais cedo fugissem, melhor seria para todos.

— Não! — Fernando se levantou em um solavanco. — Esse predador morre hoje.

— Tem certeza? — perguntou Bárbara. — Tu não parece bem.

— Não estou bem, mas não vou aturar que esse monstro continue por aí.

— Decidimos isso depois de encontrar Igor — disse Nicolas. — Nossa prioridade aqui é o resgate.

Caminharam por mais uma hora, abrindo todas as portas que encontravam. Em determinado momento, avistaram uma escadaria para o andar inferior, mas a ignoraram. Passaram a encontrar identificações contendo nomes estrangeiros, chegando a ter até mesmo letras de outros alfabetos. Abrir essas portas sempre revelava um interior igual aos demais, porém os ocupantes eram de outra nacionalidade e conversavam em outro idioma. Quando enfim chegaram ao final do corredor, deparando-se com uma parede sem janelas, voltaram até a escada e foram ao andar inferior.

Não sabia quanto tempo perderam naquele andar, mas a cada porta, a cada minuto, Bárbara parecia mais apressada. Tinham dezenas, se não centenas, de quartos a verificar, mas e se Igor não estivesse em nenhum deles?

Revistaram todo o andar inferior e nem sinal do amigo de Bárbara, tudo que encontraram foi um elevador de portas fechadas, o painel sinalizando que estava no terceiro andar, e mais uma escadaria para baixo. Desceram e repetiram o longo e cansativo processo de busca, sem obter resultado algum. Havia outro elevador apenas, e nada de escada.

— Talvez ele esteja no primeiro andar? — sugeriu Bárbara. — Vamos voltar lá e investigar.

— Aqui não é o primeiro? — perguntou Fernando.

— Pela lógica, deveria ser — respondeu Dominique. — Só que não encontramos a recepção até agora.

— Lógica não é o forte dos territórios — disse Bárbara.

— É bom começar a pensar na possibilidade de que Igor não está mais vivo — disse Nicolas, de repente.

Em um piscar de olhos, Bárbara virou-se, agarrou a corda no pescoço do homem alto e puxou-o para perto.

— Ele não está morto! — gritou ela.

Dominique se moveu para segurar a jovem, mas Nicolas levantou a mão, pedindo para não interferirem. O líder sustentou o olha furioso de Bárbara enquanto falava:

— Ele está aqui a uma semana, se formos levar em consideração a história que você nos contou. O que acha que acontece com aqueles que ficam tempo demais aqui? Sem comer, sem beber. Parece um lugar confortável nesses quartos, mas lembre-se…

Bárbara não o deixou continuar, empurrou Nicolas para longe.

— Eu sei disso, porra! Mas não revistamos tudo. Enquanto eu não olhar cada pedaço desse lugar, Igor está vivo.

— Não sabemos como funciona a passagem de tempo aqui, uma semana por ser um dia ou algumas horas. — Fernando colocou-se entre os dois. — Vamos revirar esse lugar de cabeça para baixo antes de levantar a possibilidade de morte. Que tal?

Com um clima ainda mais pesado que antes, rumaram para o elevador, que ainda sinalizava o terceiro andar. Apertaram o botão, esperando que fossem levar alguns segundos para chegar, mas ele abriu instantaneamente.

— Botões estranhos — disse Dominique, após entrarem. — Vocês não comentaram disso.

— Era tanta coisa que até esqueci dos nomes bestas. — Bárbara balançou a cabeça.

— Se eu estiver correto, só o elevador é capaz de nos transportar entre diferentes andares, então tudo que caminhamos desde que saímos é o terceiro andar — disse Nicolas.

— Isso significa que tem muito para ver ainda — murmurou Bárbara.

O líder apertou o botão para o andar “Perdição”. As portas se fecharam e abriram logo em seguida, mostrando um corredor com as lâmpadas principais desligadas, dependendo apenas das luzes emergenciais para manter o mínimo de iluminação. Naquele andar coberto pela penumbra, as portas eram vistas pela metade e o espaço entre as lâmpadas era incerto.

Bárbara e Dominique saíram primeiro do elevador. As lâmpadas piscaram por um momento, como que para recebê-los, dar boas-vindas e prepará-los para o pior.

Repetiram o mesmo processo do andar Recuperação, abrindo todas as portas que encontravam. Ali, no entanto, sempre achavam quartos vazios. Sem pessoas, decoração ou móveis. Desocupados e abandonados.

Caminharam por corredores empoeirados durante algum tempo, até que, em uma parede à direita, encontraram um buraco. Era oval e imperfeito, grande o suficiente para passar um pequeno caminhão.

Dentro havia um quarto devidamente limpo e arrumado, até a poeira se recusava a entrar nele. No fundo do diminuto cômodo, no lado direito, uma cama de solteiro estava coberta por um lençol azul-claro e um travesseiro branco. De pé, encostado na parede ao lado da cama, estava um violão e no chão próximo ao instrumento haviam cadernos abertos, mostrando partituras. Ainda no fundo, mas no lado esquerdo, havia uma pequena mesa com um notebook aberto em um programa de áudio que emitia um som agradável, acústico e simples. Uma voz jovem cantava, acompanhando o toque do violão. Até mesmo para alguém sem muito senso musical como Dominique, aquele não era o melhor dos sons, e sim alguém tentando aprender.

No meio, entre violão e notebook, preso no alto, havia um porta-retrato. Nele, uma adolescente, talvez até jovem adulta, sorria. Seus cabelos loiros, quase dourados, destoavam com os olhos escuros. As sardas no rosto, próximas ao nariz pequeno e boca rosada pareciam deixá-la mais jovem do que era.

— Ficou ótimo! Perfeito! — A música cessou, dando lugar a uma voz de mulher adulta.

— Está ruim ainda, preciso treinar mais. — Outra voz, agora mais jovem, contrariou.

Então outra música começou a sair pelos alto-falantes do aparelho. Desta vez somente o canto, sem violão.

Dominique deu um passo adiante, entrando no quarto. Foi então que seu estômago se apertou, o chão balançou e um grito percorreu os corredores do hospital. Era um aviso, uma ameaça para instigar medos nos invasores.

— O originador está vindo, vamos recuar — disse Nicolas.

— Fugiremos dele? — perguntou Fernando, se colocando ao lado do engravatado.

— Não acho que será uma boa ideia lutar contra ele aqui, talvez se o levarmos até a rua tenhamos mais chances.

E com isso o grupo se reorganizou para voltar correndo até o elevador. Os tremores ocorreram mais vezes, sua frequência aumentou, inclusive a origem estava cada vez mais próxima. Quando o elevador estava em sua visão, a parede à frente do grupo se estraçalhou. Poeira, reboco e fragmentos de tijolo preencheram a visão de Dominique por um instante. Estes deram lugar a uma criatura de corpo largo, capaz de ocupar metade do corredor do hospital, e coberto por uma fina e curta pelugem negra, com um calombo nas costas que raspava no teto, criando uma zona esfolada e sangrenta. O tronco oval terminava em uma grande cabeça humana pálida, orelhas onde deveria estar o nariz e os olhos. Uma protuberância se alongava e terminava se conectando a diversos tentáculos rosados que, em sua origem, possuíam um formato estelar. Os apêndices eram finos e compridos, se espalhando ao redor da criatura. Os braços com quase o mesmo comprimento do corpanzil saíam da área logo atrás da cabeça, começavam cobertos por pelos e iam perdendo-os até chegar nas mãos, achatadas e compridas, com os dedos e unhas curtos. As duas juntas nos braços faziam eles se dobrarem de forma bizarra. Dominique era assomada por repulsa e náusea instintivas, e dessa vez também havia um estranho fascínio.

O grupo estacou durante um momento, a poeira terminou de baixar e a criatura saiu por completo da abertura na parede, revelando pernas curtas e musculosas, pés compridos com dedos e unhas longos. Os tentáculos se espalharam, tocando as paredes em volta e criando uma espécie de rede.

— Dominique, vá com cuidado — disse Nicolas, sua voz calma e baixa.

E como uma flecha, ela correu, atravessando a distância entre o grupo e o originador em um piscar de olhos. Os tentáculos vibraram e o inimigo moveu o braço direito para atacar. Uma corda se materializou a partir da parede e se enrolou no punho da criatura, impedindo o golpe. Antes que pudesse usar o membro livre, uma segunda corda o imobilizou. Dominique aproveitou para desferir um soco no corpo da criatura. Sabia de sua força, sabia que não era pouca em nenhum padrão que usasse. Porém, bater naquele originador era como socar o tronco da mais grossa das árvores: não teve efeito algum.

Dominique socou mais uma vez. Nada. O monstro urrou e forçou mais as cordas, arrebentando todas de uma vez só. Antes que suas mãos alcançassem Dominique, uma nova leva de amarras surgiu, parando os braços e pernas da criatura.

— A cabeça! Vai na cabeça! — gritou Bárbara.

Olhou para cima, vendo os tentáculos que saíam do rosto e esquadrinhavam os arredores. Não tocavam em nada, mas moviam-se de forma errática, como se estivessem cobrindo território. Se tinha algum ponto fraco, era aquele. Sentiu os músculos da perna retesando e saltou com altura suficiente para alcançar o rosto da coisa. Agarrou-se com a mão esquerda na protuberância e com a outra mão puxou um dos tentáculos, arrancando-o. Um líquido branco espirrou ao redor, sujando o rosto e corpo de Dominique. O predador guinchou, os demais tentáculos moveram-se ao mesmo tempo e sem coordenação alguma, esbarrando uns contra os outros. Estava funcionando! Largou o apêndice arrancado, mas antes que pudesse puxar um segundo, um par de braços humanoides emergiu dos pelos abaixo da cabeça do originador e agarram-na com força surpreendente.

Seu coração acelerou enquanto aquelas mãos geladas e esbranquiçadas tocavam seu corpo. Não queria pensar na derrota, mas tudo que veio em sua mente era a morte. Seu corpo seria esmagado, os ossos quebrariam, os órgãos seriam destruídos e restaria apenas uma carcaça deformada. Por um segundo, imaginou que era esse mesmo seu destino: morrer nas mãos de predadores.

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