- Guilherme Lopes Lacerda
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Predadores: A Obsessão - Capítulo 23
Dominique age como isca para o originador
No último capítulo, adentraram o andar -1, um enorme necrotério com gavetas que iam do chão ao teto. Lá, teorizaram uma forma de derrotar o originador.
Agora, Dominique se voluntaria como isca para levar o predador até o necrotério, para que possam acabar com o território no hospital e resgatar Igor.

O olhar de todos caiu sobre ela. Nicolas mantinha sua expressão neutra, mas com um leve ar de curiosidade, Bárbara parecia considerar, já Fernando pressionava os lábios em uma fina linha, e por um momento os olhos dele foram mais para baixo.
— Eu não acho que deva ir, não sozinha — disse ele. — É muito…
— Perigoso! Eu sei — interrompeu Dominique, sua voz um tom mais alta que o normal. — Mas quem vai então?
— Deveríamos ir todos juntos — respondeu ele, gesticulando para o restante do grupo. — Precisou de todos para escaparmos da última vez!
— Dominique é capaz de escapar sozinha se não enfrentar o originador. — O olhar de Nicolas pairou na idosa. — Ela é nosso melhor recurso para isso.
Não conseguiu evitar que um sorriso preenchesse seu rosto. Era inegável o quanto Nicolas considerava toda a situação.
— Eu ainda acho…
— Dá um tempo, preocupadinho! — Bárbara deu um tapa nas costas de Fernando. — Confia na véia.
Fernando passou a mão pelo rosto e respirou fundo.
— Só não inventa de atacar aquele bicho, pode ser pior dessa vez.
— Sim, o objetivo é descobrir alguma pista da identidade do cadáver que precisamos encontrar — reforçou Nicolas. — Se não conseguir, apenas fuja.
— Sem problema! — Dominique levou a mão a testa, batendo continência. — Não vão se decepcionar.
***
Os primeiros passos no andar da Perdição foram dados cautelosamente. Não havia mais som no andar, as botas de Bárbara ficaram para trás e tudo que Dominique ouvia era a própria respiração.
Logo encontrou a entrada ao quarto. Por mais que Fernando dissesse ser apenas uma pista de um predador duplo, havia algo a mais. Era um lugar mantido limpo e intacto, sobrevivendo aos efeitos do tempo graças a cuidados frequentes de alguém que espera um dia reencontrar o hóspede do cômodo. Um santuário, uma forma de lembrança, uma forma de sentir dor e de evitá-la.
— Desculpe — sussurrou Dominique.
Entrou no quarto e o grito estridente soou pelos corredores escuros. Estava lutando contra o tempo, não havia como manter a delicadeza. Apressou-se até os cadernos e folhou-os o mais rápido que pôde, buscando por algum nome. Nada. Procurou no violão, algo escrito com caneta permanente para marcar seu dono. Nada. Procurou na mochila que havia ao lado da mesa e, apesar de encontrar mais alguns cadernos, todos estavam sem nome, vazios. Havia também um estojo com lápis, borracha, caneta e marcador. Mais uma vez, nada de nome. Olhou para o porta-retratos, arrancou-o da parede, quebrou o vidro com um soco e puxou a foto, rasgando a imagem no processo. Escrito na parte de trás, com letras delicadas e perfeitas, estava o nome: Alice da Silva Dutra.
Saiu do quarto e viu o originador chegando perto. Se afastou sem olhar para trás, mas quando os passos do predador cessaram, arriscou uma espiada. Os tentáculos estavam esticados cômodo adentro, Dominique não conseguia ver o que estavam fazendo. Pensou em correr e ganhar uma vantagem antes que a perseguição começasse, mas algo no gesto chamava sua atenção. Talvez fosse o cuidado e a calma com que o monstro agia, a ternura no movimento dos tentáculos.
Mas então ele gritou. Não foi o som estridente de antes, mas um forte e rouco, lembrando um berrante. Virou na direção da idosa e a perseguição teve início. No entanto, o monstro deixou de ser sua única preocupação. O chamado para a guerra trouxe ao andar os diversos predadores que ocupavam o território. Do teto, chão e paredes, as bestas humanoides emergiram, lançando-se na direção de Dominique. Em meio a pulos e esquivas, ela foi perdendo velocidade.
Não ousava olhar para trás, serviria apenas para atrasá-la. Além do mais, não queria ver o originador se aproximando. Faltava quanto? Alguns metros, ou seria uma questão centímetros? Não sairia com vida se fosse pega.
Teve a cara de pau de ficar toda confiante na frente do grupo, tudo para correr por sua vida no fim. Lembrou-se dos olhos de Fernando, os mesmos que muitos direcionavam para ela, exalando a certeza de que, por conta de uma característica que nem a afetava ali, ela fracassaria. Mostraria que estavam errados!
Precisava ser mais veloz! Mas, por Deus, como faria isso? Estava mais rápida que o Usain Bolt, isso não era o suficiente? Sentiu-se, mais uma vez, presa em um corpo incapaz de atender todos os seus pedidos. Então, de repente, as veias saltaram na perna, os músculos incharam, rasgando a pele e expondo a carne. Não sentiu dor, apenas um êxtase que lhe subia pela cintura e infectava todo o corpo. Finalmente entendeu o significado de seu presente, de sua benção. Não era um corpo forte e veloz. Era mais. Um corpo livre da prisão lógica, das amarras colocadas. Se ela precisava ser mais rápida, bastava ser. Um sorriso emoldurou o rosto enquanto sua velocidade dobrava.
A primeira curva expôs suas limitações. Não conseguiu diminuir a velocidade, o medo das monstruosidades atrás de si a impulsionava e, antes que pensasse em uma forma de dobrar, acabou batendo. Moveu o ombro esquerdo para a frente no último segundo, deixando-o absorver todo o impacto. Ouviu um estalo e um choque de dor percorreu o braço. Não, sem dor, sem parar, sem hesitar. Com o seu desejo, a dor sumiu, deixando o corpo com uma sensação vazia.
Virou-se, enxergando de soslaio seus perseguidores se aproximando, e voltou a correr. Não sentia mais o ar contra o rosto, era como se o corpo inteiro estivesse dormente, uma marionete cujos movimentos eram decididos pelo titereiro.
Quando uma segunda curva surgiu, suas pernas a levaram para perto da parede e os dedos da mão esquerda penetraram o reboco da estrutura. Por um momento perdeu velocidade, mas seu braço fez força para mudar a direção, e logo em seguida já tinha feito a curva sem maiores complicações. Usando essa estratégia, conseguiu dobrar mais vezes sem perder tempo e sem chocar-se contra as paredes. Chegou ao elevador, esperando-a de portas abertas. Pela primeira vez no que pareciam ser horas, reduziu o ritmo. Foi como se todos os seus músculos tivessem a chance de relaxar e Dominique sentiu-se mole ao adentrar a cabine e direcioná-la para o necrotério. Os pés da idosa deslizaram pelo chão enquanto as portas fechavam, sentiu a pontada de dor no ombro, os ferimentos nos dedos e mãos causados pelas curvas, a ardência nas pernas, que voltaram ao normal e estavam mais do que sobrecarregadas. Mesmo com as dores distribuídas pelo corpo, não deixou de sorrir. Foi um belo exercício para descobrir do que era capaz, e sentia que faltava muito ainda para explorar.
Sua euforia pós-fuga desvaneceu assim que o elevador tremeu. O coração retomou o ritmo de antes, bombeando adrenalina para as veias e expulsando qualquer resquício de dor. Mais um tremor. De repente o elevador abandonou sua descida uniforme para se jogar em queda livre. Dominique foi lançada ao teto como um boneco de pano, cima se tornou baixo e esquerda virou direita. Um pensamento ressoou no cérebro: ela morreria em meio ao metal assim que o elevador atingisse o solo.
Enxergou os botões na ponta oposta da cabine e reorientou-se. Segurou-se no teto e socou o mais forte que conseguiu, abrindo um buraco na estrutura e em seguida arregaçando o metal com as duas mãos. Sem pensar duas vezes, saiu do elevador e lançou-se em direção a um dos suportes da parede. Firmou-se no suporte e viu a cabine desaparecer na escuridão abaixo de si, levando diversos cabos rompidos consigo.
Ouviu um estrondo vindo de cima, e por pouco não foi atingida por nacos de tijolo. Levantou o olhar, mas enxergou apenas a escuridão. Temia já saber a origem daquilo tudo, suas ações no quarto não seriam perdoadas. O originador abandonara seu andar.
Metros abaixo de si, havia um suporte de metal na parede parecido com aquele na qual Dominique estava agarrada. Soltou os dedos, caiu um pouco e agarrou-se no alvo. Acima de si os sons continuavam. Repetiu o mesmo movimento de antes, descendo mais devagar do que gostaria, enquanto ouvia a ameaça se aproximando. O monstro também parecia sentir a aproximação, pois começou a urrar. Sua salvação surgiu quando enxergou uma porta de elevador. Não quis nem saber se era ou não o necrotério, foi até ela, forçou os dedos entre as divisas e abriu-a com um grito. Entrou correndo na sala e puxou Bárbara para longe do poço.
— O que houve? — perguntou a jovem.
— Ele está vindo! Procure por Alice da Silva Dutra!
Próximos ao totem estavam Nicolas e Fernando. Bastou Dominique gritar o nome para que o líder deles se pusesse a buscar na lista interminável do tablet. Não demoraria muito, mas tempo era algo que lhes faltava.
— Pão? — perguntou Fernando.
— Pão! — respondeu Dominique.
O colega passou seus dedos ágeis pelo fecho da mochila de entrega, abrindo-a em um segundo. Agarrou o conteúdo lá de dentro e atirou. A mira do padeiro falhou, mas os reflexos da idosa compensaram. Dominique pegou uma massinha doce pequena, e logo botou goela abaixo. Seus ferimentos desapareceram e um grunhido deixou a garganta de Fernando.
Sentiram um tremor no andar inteiro, seguido por um grito de raiva e da parede do elevador rachando e quebrando logo em seguida. O originador invadiu o necrotério diferente da última vez que o viram. A pelugem, antes negra, mudara para um tom vermelho pálido e doente, os tentáculos brancos tornaram-se mais agitados e ativos, como se perscrutassem qualquer partícula no ar que se movesse. A criatura investiu contra os alvos mais próximos: as duas mulheres.
— Deixa comigo! — Bárbara avançou.
Ela não deu mais do que cinco passos antes de se aproximar da criatura. O originador moveu a mão cheia de garras em um ataque lateral que deixaria dilacerado qualquer um, com exceção de sua atual oponente. Assim que Bárbara foi atingida, as rachaduras se espalharam e a jovem liberou a explosão que guardava dentro de si.
O efeito no predador foi mínimo, serviu apenas para jogá-lo alguns metros para trás. O golpe em Bárbara teve mais efeito, lançando-a contra os gavetões de necrotério, que ressoaram com a força do impacto, mas não foram amassados. Assim que a motoqueira caiu deitada no chão, Dominique agiu. Mais uma vez suas pernas responderam à altura e de um segundo a outro a idosa disparou como um projétil na direção da besta. Estava abaixo do predador e pronta para saltar e cortar fora os tentáculos quando Nicolas gritou:
— Pronto!
Dominique parou, o predador parou, talvez até o mundo. Os gavetões moveram-se como na outra vez, trazendo para perto deles o cadáver de Alice. O tempo retomou seu fluxo assim que uma gaveta próxima ao chão se abriu, revelando um corpo coberto.
O originador caminhou na direção do cadáver, e Dominique saiu de sua frente. Era a oportunidade perfeita para atacar, mas de alguma forma, sabia que o melhor a fazer era deixá-lo ir. Quando estava próximo do gavetão, os braços humanos emergiram da pelugem e descobriram Alice. O predador emitiu outro som, bem diferente da raiva e ódio que projetara até então. Ele chorou.
— Estrela… Apagada — disse ele, ou melhor, ela. Era definitivamente a voz de uma mulher. Estava embargada e difícil de compreender, mas Dominique reconheceria a tristeza de uma mãe em qualquer lugar.
Cobriu o corpo e empurrou-o para dentro da gaveta, fechando-a em seguida. O andar tremeu, o chão rachou e as gavetas começaram a sair de suas posições, caindo ao redor do grupo. O território estava se desfazendo, e junto disso veio a inconfundível sensação de que poderiam sair.
— Vamos voltar — disse Nicolas.
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