Predadores: A Obsessão - Capítulo 28

Dominique se sente incapaz após voltar do último território

No último capítulo, Fernando conseguiu marcar um encontro com a família e conversar com eles em bons termos, apesar de farpas trocadas.

Agora, focamos em Dominique, que apesar das dificuldades enfrentadas no último território, não consegue esquecer a sensação de ter um corpo capaz de fazer o que ela quiser.

Desenho monocromático. O desenho mostra vários ângulos de uma criatura humanóide. Em destaque está uma visão da frente, onde mostra o ser com olhos que são quase metade do rosto e saltando para fora das órbitas. Lágrimas escorrem pelos olhos da criatura. Alguns fiapos de cabelo despontam do topo de sua cabeça. Outro ângulo mostra a criatura de mostras, com ossos atravessando a pele da coluna e mantendo-a bem reta. O último mostra o ser de lado, com braços e dedos bem longos, capazes de chegar ao chão sem precisar se agachar. No lado direito há o número vinte e oito para indicar o capítulo.

Voltar para casa desta vez lhe tirou mais do que o movimento das pernas, ficou também sem a euforia que sentiu ao fugir do originador. Nunca antes seu corpo respondeu tanto a seus anseios, o contraste com a imobilidade parcial lhe doía no peito. Queria voltar ao território mais um pouco, correr mais, sentir a adrenalina pulsando, ir até os limites do que conseguia fazer, e então ir além destes limites.

Porém, somente com o restante do grupo conseguiria explorar os territórios. Ela podia ir sozinha, mas sabia que não tinha como enfrentar os originadores. Seria uma exploração para sua própria satisfação, e isso não era correto. A benção lhe foi dada para que ajudasse os demais. Então, como sempre, Dominique apenas esperou.

Esperou na segunda, quando todos saíram para o trabalho ou estudos, e ela ficava sozinha em casa. Esperou na terça, quando seus netos foram ao cinema assistir a um novo filme de super-herói. Esperou na quarta, quando ouviu de sua cama a família vibrando com o jogo. Esperou na quinta, quando tudo que fizeram foi jantarem juntos e descansar. Esperou na sexta, quando o neto mais velho foi a uma festa de aniversário, o mais novo ficou em seu quarto jogando até altas horas na madrugada e seu filho e esposa assistiram algum filme na televisão da sala. Tentou esperar no sábado, mas quando o filho anunciou que iam aproveitar o dia bonito de primavera, Dominique sentiu que enlouqueceria com tanta espera.

— Posso ir junto? — perguntou. — Estou a fim de pegar um ar fresco.

Manuel, que estava prestes a continuar falando, se interrompeu e a olhou com surpresa.

— Claro que pode! — Ele sorriu. — Vou avisar Isabela.

A esposa e o filho prepararam sanduíches, frutas e garrafas de água enquanto os netos acordavam e se ajeitavam. Em seguida, ajudaram Dominique a entrar no carro, ou seja, praticamente colocaram ela lá, dobrando a cadeira de rodas no porta-malas, e partiram para o parque. Muitos anos antes, Manuel comentou de comprar um carro adaptado, mas Dominique recusou. Na época, não queria causar mais problemas, então continuaram usando o carro que tinham.

Logo chegaram ao Parque de São Bento, desceram do carro e percorreram o caminho sem pressa até chegarem na área dos brinquedos. Era um local com chão de terra, rodeado por grandes árvores que jogavam sombra no terreno, ao seu redor haviam algumas mesas de pedra com tabuleiros de xadrez ou dama em seu tampo, além de ocasionais quiosques vendendo sorvetes, picolés e bebidas.

Dominique e sua família se aproximaram de uma das mesas de pedra e, como não havia espaço vago nos bancos próximos a mesa, deixaram a cadeira de rodas na diagonal. Jogaram uma toalha sobre o tampo e puseram a sacola térmica com as bebidas e os sanduíches sobre ela.

O local já estava repleto de outras famílias, cada uma com seus filhos e animais de estimação. Se tivessem demorado mais alguns minutos, não haveria vagas.

— Mãe! Mãe! Podemos ir brincar lá? — perguntou Luiz, o neto mais novo, apontando para o parquinho contendo escorregadores, balanços, gangorras e outros brinquedos.

— Podem sim. — Isabela olhou para o Manuel. — Você vai lá com eles? Eu fico aqui com a vó.

— Podem ir os dois — disse Dominique. — Eu cuido das coisas.

Não que ela fosse um símbolo da proteção ou algo do tipo, mas esperava que, pelo menos no meio de um parque movimentado, ninguém fosse lá roubar os seus pertences. E caso existisse alguém tão ousado, esperava que outras pessoas no mínimo a ajudassem. Além do mais, os brinquedos estavam próximos, daria para observar os netos e o filho de onde estava.

Minutos se passaram e nenhum perpetrador apareceu para roubar os pertences da família. Dominique relaxou, e nem tinha notado que estava tensa antes. Por que ficar em alerta no parque? O que tinha demais ali? Prestou atenção aos seus arredores, tentando encontrar um motivo.

Alguns metros à sua esquerda, um homem e uma mulher jovens conversavam, na frente dos dois, uma criança de não mais que quatro anos brincava com bonecos. O olhar passou por diversos transeuntes e parou em duas mulheres sentadas à sua direita, as duas de mãos dadas, trocando sorrisos e palavras. Um pouco estranho, mas nada perigoso. Olhou para sua frente e viu, há poucos metros, um cachorro de médio porte caminhando, seus pelos curtos e amarronzados, orelhas altas e rabo longo a lembraram de Jen. Botou a mão no peito, sentindo uma estranha palpitação. Mais uma das perdas difíceis do acidente. Nunca nem pensou em ter outro cão depois da perda da companheira, ela própria imaginava que não duraria muito tempo. Mas viveu.

Viveu mesmo? Os últimos anos eram nebulosos, uma mistura indefinida de dias sem nada acontecer ou mudar. Desistiu de tomar decisões para deixar sua vida na mão dos outros. Na mão do filho, principalmente. Por muitos anos, desejara ter mais liberdade, mas, ao mesmo tempo, fugia disso. Por que? O que mais o acidente lhe tirou sem que percebesse?

Enquanto o cachorro passava, com sua dona alguns metros atrás, Dominique decidiu que, após uma década, precisava retomar o controle de sua vida. Se era autonomia que queria, primeiro precisava tomar as próprias decisões, escolher o próprio caminho. Caso contrário, sua liberdade seria apenas um tempo fora da cela, alguns minutos de intervalo em que podia ser ela mesma.

Passou o resto da manhã e um pouco da tarde no parque e, assim que chegou em casa, disse estar cansada. O filho a levou para o quarto e ajudou a colocá-la na cama. Quando ele saiu, fechando a porta e desejando um bom descanso, Dominique agiu.

Ligou a luminária na cabeceira da cama e pegou um livro que estava há anos juntando pó ali. Pensou em diversos recados e despedidas para dar, mas não sabia a melhor forma de colocá-los no papel. Optou por algo simples: “Preciso partir para ajudar o resto do mundo”. Era verdade, mas também mentira. Não era aquele o principal motivo. Arrancou a folha e deixou sob o livro.

Esticou-se para o lado esquerdo, onde ficava seu armário, e puxou mudas de roupa. Pegou a colcha que estava usando na cama e um travesseiro também. Ficou alguns segundos olhando para o quarto pouco iluminado. Respirou fundo, assentiu e foi ao farol.

Logo sentiu o vento forte da costa batendo em si e ameaçando levar as roupas para longe. Era revigorante! Não estava ali para ficar algumas horas, mas dias, meses, quanto tempo quisesse.

Por mais que desejasse sentir o vento e a maresia, seria estúpido largar suas coisas ali. Dominique subiu ao topo do farol e organizou seus poucos pertences. Apesar de não ser o lugar mais espaçoso do mundo, era o suficiente para que se sentisse confortável. Fez uma espécie de cama com a colcha, deixou o travesseiro por cima e olhou em volta. Ouvia o som do mar batendo no promontório, o vento passando pelos vidros, seus próprios pensamentos e seu corpo. Perfeito.

Ainda precisava pensar no que fazer em seguida, mas antes, um cochilo para organizar as ideias seria muito bem-vindo.

***

Estava no céu, bem acima das nuvens. Ao seu redor estendia-se uma casa sem paredes, cujo piso do chão espalhava-se por muitos quilômetros. A maioria dos cômodos ligavam-se uns aos outros por pontes de madeira que não tinham mais que um metro de extensão. Aqueles que não possuíam pontes estavam mais distantes, cerca de quinze metros, e era necessário pular para chegar até eles.

Dominique caminhava pela casa aérea com naturalidade. Nunca usava as pontes, preferindo sempre saltar a distância entre um espaço e outro. Era mais divertido, e conseguia sentir o ar resistindo contra seu impulso toda vez. Vagou sem destino, mas quando ouviu uma voz grave e melosa, seguiu até ela.

Encontrou um banheiro com um homem dentro. Ele estava apoiado na pia e se olhando no espelho. Não tinha mais que trinta anos, mas sofria de problemas na coluna e fazer qualquer tipo de exercício, até mesmo uma caminhada, o deixava com dores. Ele não queria mais aquelas dores.

Aproximou-se do sujeito e tocou em suas costas. Seu conhecimento de medicina era resumido a matérias de televisão, alguns documentários e uma ou outra coisa que leu em revistas. Sua benção, porém, era sua vontade e seu poder, com ela poderia modificá-lo assim como modificava a si mesma. Alterou a coluna do homem, deixando-a reta, reforçando-a, mexendo nos nervos para que sentisse menos dor. Ele se tornou capaz de caminhar de forma correta, sem passar por sofrimento algum.

Ao olhar o resultado de seu trabalho, notou que o homem parecia mais alto graças às alterações. As lâminas vertebrais se manifestavam como protuberâncias compridas que rasgavam a pele e se exibiam ao mundo com seu tom esbranquiçado. Infelizmente, o sujeito não conseguia mover a cabeça e nem dobrar o torso. Mais alterações se faziam necessárias.

Começou pela cabeça, trabalhando para aumentar seu campo de visão, assim não precisaria movê-la. Trocou a localização das órbitas para ficarem uma em cada lado da cabeça, precisou remover o cabelo para que não caísse no olho e atormentasse o pobre coitado. Depois aumentou o tamanho dos globos oculares, expandindo-os para ficarem tão grandes quanto a palma de sua mão. Satisfeita, passou aos braços. Estes eram mais simples, bastava aumentar o tamanho deles para que os dedos fossem capazes de tocar no chão, e então aumentar o número de articulações nos membros.

Deu um passo para trás e observou mais uma vez o resultado do trabalho. O homem não tinha mais defeitos graves, era capaz de usar os braços para alcançar qualquer objeto que estivesse ao seu redor, os olhos viam tudo, a coluna era praticamente inquebrável. As pernas só ficaram parecendo curtas se comparada aos membros superiores, mas era um problema estético, não funcional.

O olho direito do homem se moveu, fixando-se em Dominique. Lágrimas escorriam do enorme globo, estava tão feliz! Ele passou as mãos pelo seu corpo, caindo de joelhos em seguida e estendendo os braços compridos na direção de sua benfeitora, em um sinal de agradecimento.

— Por quê?

Uma cortina se abriu diante dos olhos de Dominique. O que fez? Por que fez? Fruto de seus poderes ou não, aquele homem estava longe do que poderia ser um humano e, mesmo que tivesse resolvido seu problema, que outros criou sem saber?

Notou algo movendo-se pela visão periférica e virou-se. Em um quarto de casal à sua direita, viu o que só conseguiu definir como um amontoado de carne arrastando-se pelo chão. No meio da vermelhidão, havia um coração batendo, os pulmões inspirando e expirando, o estômago trabalhando. Seus instintos lhe diziam se tratar de mais um de seus “pacientes”.

Segurou a respiração, pensou em fazer aquelas pessoas voltarem ao normal. O que era o normal delas? Dominique olhou para a aberração que criou há nem cinco minutos e não conseguiu lembrar como ele se parecia. Olhar para o amontoado de carne era pior ainda, não tinha uma referência sequer da pessoa que um dia fora. Era criança, adulto ou idoso? Homem ou mulher? Tinha alguma marca de nascença? Não sabia nada.

Correu para longe, mas desta vez, ao passar pelos cômodos, notava como a casa estava repleta de pessoas que ajudou. Algumas ainda lembravam um pouco a forma humana, mas o corpo estava tão distorcido que nada se encaixava direito. Outras se tornaram algo diferente demais, variando entre uma esfera de tecido nervoso, transmitindo e recebendo estímulos que deviam trabalhar em conjunto com o cérebro e outros órgãos que não mais existiam, até aqueles que nada tinham de carne, somente uma fumaça incapaz de tocar, sentir, ver ou emitir sons, apenas vagando pelos cômodos enquanto deixavam um rastro cinzento e gosmento atrás de si.

Tentar fugir só a fazia ver mais e mais daquele horror. A diferença entre eles era tão grande que acostumar-se era impossível. Não havia para onde fugir, a casa se estendia infinitamente para qualquer lado que corresse. Restava apenas uma saída.

Pulou no vão entre os cômodos, queria a segurança da terra, queria estar abaixo das nuvens mais uma vez. Caiu, atravessando a imensidão branca e aproximando-se do enorme azul abaixo de si. Era um lago, cristalino e calmo como em um dia sem brisa alguma. Conforme se aproximava, notou o seu reflexo na água. Das costas brotavam asas brancas enormes, como aquelas que se viam em pinturas de anjos. As mãos e braços estavam pálidos, mostrando as veias pulsando com intensidade e se remexendo como vermes dentro de um hospedeiro. Do tronco brotavam membros que deveriam ser outros braços, mas que acabavam em lâminas de metal afiado. As pernas eram um conjunto de músculos reforçados por um exoesqueleto vermelho, produzindo uma camada fina de um líquido pegajoso. A única parte humana era a face, com os olhos esbugalhados, as sobrancelhas erguidas e a boca levemente aberta enquanto encaravam o reflexo no lago.

Dominique não fez nada para impedir de cair na água e afundar.

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