Predadores: A Obsessão - Capítulo 4

Bárbara acorda no farol após ser resgatada por Fernando e Nicolas

No último capítulo, Fernando voltou ao metrô com Nicolas para entender mais da situação em que estava. Lá, encontraram vagões em ruína. Ao seguir o caminho da destruição se depararam com uma mulher moribunda e acuada, que liberou uma poderosa explosão quando interagiram com ela. O ataque drenou o que restava de suas forças e a deixou inconsciente. Com isso, Nicolas aproveitou para fazer um resgate forçado, levando a mulher e Fernando para um local diferente: o farol.

O desenho mostra Barbara, uma mulher de cabelos longos e cacheados, usando pijama. Ela está sentada na cama e olhando com uma expressão tensa para o celular. No fundo, à direita, há um armário de roupas, e na esquerda uma porta. No topo da imagem há o número quatro para indicar o capítulo.

Acordou com os sons clássicos de uma discussão. Virou de lado e fechou os olhos com mais força, não aguentava mais as brigas da mãe e do padrasto. Parecia até um evento marcado que acontecia toda semana. Tentou ignorar as vozes por alguns minutos, porém notou que eram desconhecidas. Abriu os olhos e se sentou em um pulo.

Estava no interior de uma construção circular. A parede era feita de vidro e no meio havia uma enorme lente estranha: começava no centro com um círculo pequeno interior e ia se repetindo até chegar próximo do teto e do chão, tudo isso suportado em uma plataforma de metal. Mesmo com a lente no meio, a sala ainda era grande, comportaria mais pessoas, muito mais do que ela e os dois homens que discutiam.

Lembrou-se do acidente ao olhar o rosto de ambos. Na ocasião, andava muito mais rápido do que deveria na Freeway, uma forma de deixar a raiva para trás, e se distraiu por um momento. Em seguida, teve a breve visão de um triângulo de sinalização e então alçou voo. Depois veio o metrô, não conseguiu evitar de levar a mão até a garganta, sentindo resquícios de um aperto agonizante. E não só isso, tinham outros homens e mulheres a atacando, fosse com socos, chutes ou armas que não conseguia compreender ou processar.

Levantou-se devagar, tinha que achar uma saída dali. Seus planos foram frustrados na mesma hora, quando um dos homens, o mais alto e pálido, usando uma corda no pescoço e com uma manga faltando no terno, olhou em sua direção. Ele tentou se aproximar, mas o outro botou a mão em seu peito e interrompeu-o. O baixinho musculoso possuía cabelo preto bem curto e vestia uma camiseta de manga curta vermelha clara sem estampa e um pouco apertada nos braços, já o jeans cinza claro pareciam um pouco folgados demais.

— Tu já fez merda antes, deixa que eu falo com ela — disse o baixinho.

O pálido concordou e recuou, olhando para o chão atrás de si. Bárbara acompanhou o movimento e viu ali a sua chance de fugir, uma escadaria para baixo. Tinha certeza de que nocauteava o alto, mas o outro seria complicado. Não tinha escolha, precisaria deixá-los vulneráveis primeiro, fazê-los baixar a guarda.

O moreno deu um passo em sua direção, ainda mantendo uma certa distância.

— Fique tranquila, só vamos conversar — disse ele, pausadamente. — Eu entendo a confusão que está sentindo.

— Entende mesmo? — As palavras saíram antes mesmo que pudesse pensar em todas elas. — Por que me atacaram então? Acha que vou acreditar nisso?!

— Fizemos merda lá, mas foi pra te salvar. Eu juro. — Ele colocou as duas mãos no peito. — Não conseguiríamos te levar pra fora no estado em que estava.

— Do que está falando? Que estado?

— Tu estava toda… As fendas na pele? — Ele passou os dedos no próprio rosto, desenhando rastros. — Lembra?

Bárbara franziu o cenho, aquela era a pior tentativa de enganação que já presenciou. Fendas na pele? Olhou para as costas das mãos. Estavam limpas. Virou as palmas para cima e, como um lampejo, as recordações vieram à tona. Estava de volta no vagão, sendo ferida e agarrada. Lembrou-se do calor percorrendo seu corpo, como se quisesse escapar por qualquer lugar possível. Viu a pele rachando e se abrindo como asfalto, no interior da fenda havia apenas o vermelho de seu sangue, sua raiva.

Recuou até bater com as costas no vidro.

— O que fizeram comigo?

— Nós não fizemos nada. Somos iguais a você, de certa forma — respondeu o pálido.

Em seguida, ele tirou um canivete do bolso da calça, esticou o braço sem a manga e passou a lâmina na pele e carne, abrindo um corte profundo. Não vacilou em sua expressão séria por um momento sequer. A visão do sangue a paralisou tanto quanto a frieza da ação. Não estava lidando com pessoas normais, talvez o musculoso até fosse, mas o outro não. O baixo olhou para trás e viu o sangue escorrendo.

— Desgraçado! Podia dar o sinal antes!

Correu para trás da estrutura no centro da sala, saindo da vista de Bárbara. Logo voltou com uma mochila de entrega nas mãos, tirou um pão, uma bisnaguinha, de dentro dela e alcançou para o home ferido, que guardou o canivete, pegou o alimento e o devorou em instantes. O corte começou a se fechar, primeiro pelo sangue que parou de escorrer, deixando a carne à mostra, e então, puxada por uma força invisível, a pele se fechou. Em segundos, nem uma cicatriz restava.

— Isso dói sabia? — disse o baixo, esfregando o braço esquerdo com uma expressão de dor no rosto.

— Vê agora como somos parecidos. — O maluco se aproximou dela. — Eu enforco, ele cura e você explode. Se quiséssemos te matar ou te ferir, não estaria em pé. Podemos conversar agora?

Bárbara assentiu. Ainda fugiria na primeira chance que dessem, mas queria, pelo menos, entender o que estava acontecendo.

Após ouvir uma apresentação seguida de explicações, sua vontade de fugir ainda estava lá, mas sufocada pelo que acabara de escutar.

— Então, tu… Nós, fomos escolhidos pra matar essas coisas? — perguntou ela, com a voz vacilante.

— Não — respondeu Nicolas. — Não somos obrigados a nada, mas nossas habilidades nos tornam os únicos qualificados.

— Mas por que nós? Não seria melhor escolherem pessoas realmente capacitadas? Policiais e militares, por exemplo.

— Quem disse que não somos capazes?

— Eu não me sinto capaz — disse Fernando, apontando para o próprio peito.

— Vocês conseguiam realizar seus trabalhos quando tinham dez anos? — perguntou Nicolas. — Ninguém nasceu pronto, isso não existe, mas dentro de nós há potencial.

Bárbara sentiu-se de volta nas palestras motivacionais que a empresa fornecia de vez em quando.

— Ta, nós temos o potencial e toda essa baboseira. Mas e daí? Agora saímos entrando em territórios e pronto? Acabamos com os predadores?

— Não, isso seria idiota. — Nicolas foi até o vidro e olhou para fora. — Fazendo isso estamos lidando com o sintoma, não com a causa.

— Não entendi. — Fernando franziu o cenho.

— De onde vêm os predadores? — Nicolas perguntou sem tirar os olhos do exterior. — Até respondermos isso, nossos esforços são paliativos. Por isso estou montando uma equipe que não só mate predadores, mas que me ajude na investigação.

Bárbara olhou para Fernando que, apesar de ter ajudado na explicação dos eventos recentes, possuía um olhar confuso. Fitou Nicolas.

— E só achou nós até agora? — disse ela, fitando Nicolas.

— Não. Alguns eu decidi que seriam nocivos ao meu objetivo e outros recusaram o convite. — Ele a encarou. — Essa é uma opção também, recusar.

— Claro que é — disse Bárbara. — Estou recusando agora mesmo.

— Por que não pensa em tudo primeiro? Vá para casa, descanse e me ligue depois com a resposta.

— Não precisa, estou dando ela agora.

— Reflita primeiro — insistiu Nicolas, sem vacilar.

Bárbara inspirou fundo e soltou tudo de uma vez. O que precisaria fazer para que o maldito entendesse que sua vida já era complicada da forma que estava? Não tinha tempo para mais uma tarefa na sua pilha de estresses que se acumulavam a cada dia.

— Vou mostrar para ela como voltar — disse Fernando. Olhou para Bárbara, chamou-a com um gesto de mão e caminhou em direção à saída.

Desceram uma escada vertical de dois metros e então seguiram por uma escadaria caracol. No meio da construção havia duas enormes correntes de metal que iam do topo até o chão e, assim que desceram tudo, Bárbara viu que havia um peso de metal no fim das correntes. Fernando abriu a porta de madeira velha e, pela força que o homem fez, pesada. Saíram para fora.

Olhara de relance para o exterior, mas nunca tinha parado e observado onde estava. A construção em que se encontravam, um farol, ficava em um promontório. Além dele só se via o mar, com suas águas escuras e infinitas. Do outro lado enxergava uma pequena descida rochosa e, ao fim desta, um campo cheio de grama.

— Onde estamos?

— No farol, não sei te dizer mais do que isso. — Fernando olhou para cima. — Nicolas disse que esse é um território sem dono e seguro.

— Tanto faz. — Cada resposta só a deixava confusa. Desistiu de tentar entender e apenas aceitou. — Como saio daqui?

— Bem fácil, feche seus olhos e pense em… Mora em casa ou apartamento?

Bárbara o fitou com olhos semicerrados.

— Apartamento.

— Pense nele, então, no lugar que tu mais gosta de ficar.

— O que mais?

— Só isso.

Fechou os olhos pensou na sua residência, no seu quarto, na sua cama. Só queria dormir um pouco.

Fernando começou:

— Pense no que…

Bárbara abriu os olhos para perguntar qual seria o resto da frase, mas não havia mais Fernando, não havia mais farol. Estava de volta ao seu quarto. Não quis nem saber o horário, se deitou e dormiu.

Estava em um saguão alto, de pé no teto e de cabeça para baixo. Pessoas, estas no chão, caminhavam de um lado a outro, trombavam umas nas outras e seguiam seu caminho sem pedir desculpas. Um arrepio percorreu seu corpo ao se ver parada lá embaixo, caminhando sem rumo, sem chegar a lugar algum. Um enorme relógio de pêndulo em uma das paredes do cômodo tiquetaqueava sem parar. Sentiu uma respiração na nuca e mãos em seus ombros. Seu corpo imobilizado nada podia fazer. Rápido como surgiu, o que estava atrás de si desapareceu.

Acordou pouco antes do amanhecer, com fracos raios de sol atravessando a persiana e trazendo luz e deveres ao apartamento. Acostumada a acordar com o despertador, Bárbara levantou num pulo e checou o celular, apenas para notar que estava sem bateria.

Com um olho fechado e outro tentando abrir, ligou a luz do quarto. Cerrou com força os dois olhos até se acostumar com a iluminação, então catou o carregador pelo cômodo. Encontrou-o no meio das roupas velhas que receberam a função de pijamas e botou o celular para carregar.

Aproveitou que estava cedo e começou sua rotina matinal com calma. Era impressionante como um banho bem tomado e uma torrada no capricho melhoravam a manhã de qualquer um.

Voltou até o celular e, vendo que já tinha um pouco de carga, o ligou. Segundos após conectar ao wi-fi que o vizinho compartilhava, foi bombardeada de notificações. Dezenas de mensagens no WhatsApp, e-mails oferecendo criptomoedas e cupons de desconto, além de chamadas perdidas de seu gerente e até mesmo de Igor, o mais próximo de um amigo que tinha na empresa.

Ao ver as ligações, lembrou-se do que a fez quase se matar. Uma crescente tensão no corpo surgiu junto com a vontade de voltar para baixo dos lençóis e esquecer tudo, esperar até que ninguém se lembrasse dela e então retomar a vida como se nada tivesse acontecido. Sabia, porém, como a realidade é implacável e não se pode aguardar os problemas se escafederem. Ignorou os grupos e viu as mensagens privadas que perdera.

Igor

Oi

Tudo bem por aí? Me disseram que tu sumiu ontem e não apareceu hoje

Até o gerente veio perguntar por ti, não sei o que deu, mas ele parecia furioso

Respirou fundo e visualizou as do gerente.

Maurício (Gerente)

Bárbara tudo bem?

Fiquei sabendo do que aconteceu hoje mais cedo… Podemos conversar sobre isso amanhã?

Bárbara tudo bem?

Sei dos problemas de ontem mas preciso de ti hoje aqui, temos muitas notas pra contabilizar e o time ta sobrecarregado.

Não gosto de fazer isso mas se não aparecer eu vou ter que acionar o RH


Enquanto pensava em respostas, releu as mensagens até cansar. O que escrever? A verdade era tão improvável que a mandariam direto pro hospício se contasse tudo. Mas, vendo o que o gerente escreveu, talvez lá não fosse tão ruim. Olhou para o relógio, estava cedo, faltando boas horas para iniciar o expediente, decidiu postergar a explicação e mandou a mesma mensagem aos dois: “Tive uns problemas, desculpe… estou voltando hoje”.

Largou o celular e caminhou pelo curto espaço do apartamento. Dezenas de conversas com Maurício passavam por sua cabeça. O que dizer? Como responder as perguntas que ele provavelmente faria? A hora seguinte foi tomada por esses diálogos imaginários e, quando o despertador soou, pegou suas coisas e saiu às pressas do apartamento. Passou na garagem para verificar se estava vazia, mas encontrou sua Kawasaki lá, intacta apesar dos acontecimentos. Por um momento ficou confusa, mas se aceitou que ia para outra dimensão com seres deformados, não questionaria muito o estado do veículo.

Pela primeira vez desde que passou do período de experiência, Bárbara foi a primeira do setor a chegar na empresa. A cabeça ainda estava cheia de preocupações, mas se distraiu com o trabalho, era difícil não ficar assim ao ver a montanha de e-mails e notas para lançar no sistema.

Às dez em ponto, sentiu uma mão no seu ombro. Os dedos paralisaram logo acima do teclado. Olhou para trás e viu Maurício, com uma expressão séria.

— Vamos conversar — disse ele, calmamente.

— Claro — respondeu Bárbara, quase sem pensar.

Bloqueou o computador e o seguiu até uma sala pequena e fechada. Viu pelo caminho os rostos de colegas se levantando, seus olhos caçando a nova fofoca do dia igual abutres procurando carniça. O local continha uma televisão grande na parede, uma mesa oval e uma dúzia de cadeiras executivas ao redor. Maurício fechou a porta e sentou-se. Bárbara escolheu um assento que ficasse de frente para o gerente. Sua cabeça trabalhava como nunca, milhares de perguntas e respostas se passavam por ela.

— Bem… — Maurício suspirou. — Pode me explicar o que aconteceu?

De repente, nada que tinha pensado até ali passou a servir. Continham erros e defeitos, eram mentiras óbvias. Decidiu se contentar com a verdade, pelo menos, uma parte dela. Respirou fundo e encarou Maurício.

— Eu estava na cozinha tomando meu café. O Eder apareceu lá e me convidou para sair, eu disse não e… — Por mais que soubesse que era o certo, continuar o resto da história se tornou difícil. — Ele… ele passou a mão em mim. Eu me irritei e bati nele.

Maurício apoiou os cotovelos na mesa e entrelaçou os dedos. Expirou pela boca e manteve o olhar impassível em Bárbara.

— Esse incidente, que tal deixarmos de lado? Eder cometeu um erro e tu também. Ambos precisam esquecer isso.

— O quê? — Não acreditou no que ouvia. — Que erro eu cometi?

— Tu deu um socou nele, Bárbara. Fez ele sair sangrando da sala, até registrou queixa no RH. Passou a tarde inteira com o rosto inchado.

— Claro que eu bati nele! — Bárbara se levantou, apoiando as mãos na mesa e se inclinando na direção do gerente. — Ele me assediou, queria que eu agradecesse?!

— Dois errados não fazem um certo.

— Ah sim, agora vai vir com esse papinho?

— Bárbara! — Maurício levantou o tom de voz um pouco. — Pode se sentar?

Ela largou o corpo contra a cadeira, fazendo as rodinhas deslizarem alguns centímetros no carpete.

— Vou te explicar a minha situação, está bem? — Sem dar tempo para ela lhe dizer que cagava para essa situação, continuou: — Tenho um funcionário antigo da casa e com bom histórico registrando uma queixa contra ti. Tenho tu, explicando que foi… assediada, sem provas. Não há câmeras na cozinha para provar nenhuma das histórias. Eu também tenho um mês cheio e está difícil achar profissionais qualificados na área. Tu é uma das melhores que temos. — Pena que o salário não refletia nem um pouco essa grandeza. — Vamos fazer o seguinte, te deixo com uma advertência e pronto. Pode ser?

Entendeu de cara a pergunta, não era um “Pode ser?” sincero, era um “Aceite ou será demitida”. Fosse alguns anos atrás, na escola ou faculdade, era capaz de deitar o chefe na porrada só para deixar de ser escroto. Mas precisava de trabalho, tinha as parcelas da moto e o aluguel para pagar, então enfiou a vozinha revoltada no fundo da alma e, com nojo de si mesma, respondeu:

— Pode ser.

— Muito bom — respondeu ele, como se estivesse educando uma criança. — Eu vou falar com o RH, pode voltar para tua mesa.

O dia foi um daqueles que parece infinito, não importava a quantidade de trabalho que Bárbara fizesse. Não quis nem olhar na cara de Eder, e o filho da puta teve a decência mínima e inesperada de ficar na dele o dia todo. Os dedos já estavam cansados e uma dor começava a lhe incomodar o pulso direito quando o expediente acabou e pôde voltar para casa. Não sentia raiva, nem sabia qual sentimento a assolava na verdade, era apenas um vazio.

No apartamento, logo foi para o sofá e ligou a televisão. Várias matérias passaram no jornal local sem deixar registro na mente de Bárbara. A única que deixou uma pequena lembrança foi uma notícia sobre o clima instável e pessoas desaparecidas. Desligou a televisão e se pôs a arrumar a casa.

Não faria uma faxina completa, só dobrar roupas jogadas por aí, limpar a pia e organizar a sala. Enquanto pegava roupas e avaliava o cheiro, além de verificar os bolsos a procura de notas de dinheiro ou algum cartão, sentiu um papel na calça do dia anterior. Tirou ele e viu um número ao lado de um nome. Quando foi que aquele papel de Nicolas parou no seu bolso?

Pensou na loucurada no farol. Antes, não pretendia aceitar a oferta daqueles dois. O perigo de morrer era real, mas se morresse, que diferença faria? O mundo não lhe dava nada de bom, nunca teria a vida com a qual sonhou.

Gravou o contato de Nicolas e mandou uma mensagem para ele pelo WhatsApp.

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