- Guilherme Lopes Lacerda
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Predadores: A Obsessão - Capítulo 5
Uma idosa chamada Dominique da seus últimos e acorda em um território
No último capítulo, Bárbara acordou no farol. Nicolas e Fernando lhe explicaram o que ocorreu, mas a mulher reagiu com descrença. Após voltar para seu apartamento e ter que lidar com as consequência de suas ações antes de “morrer”, Bárbara decidiu que preferia enfrentar predadores a continuar em sua rotina normal.

Para olhos cansados que viveram bastante, os dias se misturavam em indistinguíveis amálgamas de eventos. Sempre começavam com Dominique na sala, assistindo as primeiras notícias da manhã enquanto os membros da família saíam para seus afazeres. Uma apatia dominava a idosa, e nem mesmo a volta dos parentes trazia cores ao dia, pois não faziam muita diferença no eterno marasmo que era sua rotina.
Sempre desejava, sem falar para ninguém, é claro, que Deus pusesse um fim em sua vida. Não que a odiasse, apenas não via motivos para continuar no mundo. Abandonara qualquer objetivo ou sonho, não tinha mais com quem compartilhar conquistas ou alegrias, perdera tudo de uma vez só e se tornara prisioneira do pior cárcere que existe. Ansiava por uma liberdade impossível.
Por isso, não foi com estranheza que recebeu o peso estranho no peito. Decidira dormir mais cedo por conta de um cansaço anormal, e minutos depois de deitar veio a sensação incomum. Não ficou desacompanhada, logo o suor frio tomava conta do corpo enquanto as batidas do coração aceleravam. Não pediu ajuda, e mesmo que quisesse, se achava incapaz de reunir ar para gritar. Fechou os olhos e aceitou seu fim, esperando as dores passarem e a vinda da paz.
Não esperava que fosse dar de cara com um bosque composto unicamente de angicos-brancos e sem vegetação rasteira alguma, apenas terra úmida. Era uma noite de calor intenso e abafado, fazendo Dominique suar mesmo em sua camisola. O silêncio e os dois olhos prateados que a observavam da copa de uma árvore lhe inquietavam. De tudo isso, o que mais a surpreendeu foi o fato de estar em pé.
Antes que pudesse apreciar sua nova vida, ouviu um grito. Um pássaro saiu voando onde estavam os olhos brilhantes, deixando Dominique sozinha e dividida entre ir atrás de quem gritou ou ir na direção contrária. Quem sabe pudesse esperar ali até que a encontrassem? Que pensamento estúpido, faria as mesmas coisas de sempre, sem nunca tomar iniciativa?
Deu seu primeiro passo naquele mundo novo, indo em direção à voz. Pegou confiança e, vencidos alguns metros, acelerou. Todas as árvores pelas quais passava eram da mesma espécie e os pássaros de olhos prateados a observavam sem se mover. Não ouviu mais nenhum pedido de socorro e logo seguia a esmo, sem saber se já passara ou não pela outra pessoa.
Por pouco não trombou com uma mulher que vinha da direção oposta. Dominique evitou a colisão com um salto rápido e fitou a moça, que também parara. Ela tinha cabelos longos e bagunçados e, ao mirar Dominique, a idosa reconheceu o tremelique e os soluços de um choro intenso. Usava uma roupa branca com algum símbolo no peito impossível de identificar pela sujeira marrom de terra.
— Me ajude! Elas vão me pegar! — A mulher deu um passo em sua direção, estendendo as mãos.
A madeira, anteriormente cinza do tronco mais próximo, criou manchas marrons e claras. Em seguida, os galhos se moveram. Eram rápidos e flexíveis como se feitos de borracha, mas ainda havia os estalos característicos quando esticaram e enrolaram-se no tórax e pernas da jovem. O aperto acirrou e em seguida veio o estalo dos ossos quebrando. Viu quando a árvore ergueu a mulher em meio a gritos de desespero para o alto, os ramos enrodilhando a presa como se fossem serpentes, mas diferente dos répteis que matavam por asfixia, o angico-branco não hesitou em apertar o máximo possível, torcendo o corpo e silenciando sua vítima para sempre.
Estava no inferno, só podia ser isso, nada mais explicaria lhe darem um presente tão desejado para, em seguida, mostrarem aquela cena terrível. O corpo tornou-se um iceberg e Dominique temeu por um segundo que ficaria paralisada, mas bastou dar um passo para trás que seus instintos despertaram e a levaram para longe do terror.
No entanto, não importava o quanto corresse, não conseguia deixar para trás os angicos-brancos nem os pássaros, e quanto mais fugia, mais corpos destroçados pelas árvores ela encontrava e mais sentia vontade de parar e desistir. De que adiantava toda aquela correria para chegar a lugar algum?
Os pensamentos negativos cessaram junto com a movimentação quando se chocou com outra pessoa viva. Os dois se desequilibraram e quase caíram. Dominique arregalou os olhos para aquele homem de terno e corda no pescoço, tão deslocado quanto ela, mas transmitindo uma calma impossível. A idosa falou sem nem pensar:
— Por favor, me ajuda!
Sentiu algo passando por si, como um projétil rápido, e no momento seguinte o tronco mais próximo ganhou um tom marrom. Em uma repetição do que viu acontecer antes, os galhos moveram-se em sua direção. O corpo da idosa reagiu mais rápido que a última vítima, saltando vários metros para trás e escapando do agarrão mortal.
Dominique não teve tempo de entender aquele movimento anormalmente rápido e poderoso, pois tropeçou nos próprios pés assim que aterrissou e viu outra árvore prestes a lhe capturar. Fechou os olhos e quis que acabasse rápido, mas a dor não veio. Em vez disso, uma voz masculina:
— Abra seus olhos e corra.
Ao redor da idosa, o angico que a atacava estava restringido por uma dúzia de cordas que surgiam em pleno ar e sustentavam-se no nada. O homem aliviava o aperto da forca no próprio pescoço.
— Corra! — gritou ele.
Desta vez obedeceu, levantando-se e correndo para qualquer direção. Seu salvador logo a acompanhou na fuga, mantendo uma certa distância. Outras árvores nas proximidades mudavam de cor e atacavam Dominique sem dó. Mais preparada dessa vez, conseguia se esquivar dos galhos com movimentos rápidos e impulsionados por um instinto que não sabia possuir. Acima deles, as aves que antes se limitavam a ficar empoleiradas agora voavam e grasnavam, seguindo os dois fugitivos.
Dominique sobreviveu como pôde, seu corpo obedecendo-a com precisão para escapar dos ataques. Se agachou rápido quando os galhos de uma árvore vieram em direção ao seu tórax e cabeça, pulou por cima quando um angico tentou lhe chicotear as pernas. A dificuldade aumentava conforme as plantas tornavam-se mais rápidas e reativas. Os ramos cada vez mais chegavam perto de atingir a idosa atlética. Ou talvez fosse apenas o cansaço vencendo o desejo pela sobrevivência.
Antes que fosse tomada pela exaustão e cometesse um erro fatal, os pássaros silenciaram, as árvores cessaram os ataques e uma ave caiu na frente de Dominique. A visão do animal morto com o pescoço retorcido a fez parar e olhar ao redor. O chão estava repleto daqueles bichos, quando foi que tantos começaram a segui-los?
Mais atrás estava o homem, intacto e correndo para se aproximar. Coçava o pescoço enquanto afrouxava a corda. Era uma visão estranha, mas dadas as circunstâncias Dominique não reclamaria.
Logo os pássaros começaram a perder forma e cor, as penas azuis do corpo e as pretas da cabeça ganharam um tom arroxeado, em seguida transformaram-se em um visco que se espalhava pelo chão e desaparecia. Dominique desviou o olhar das aberrações.
— Os pássaros estavam comandando as árvores pelo que entendi — disse o homem, fazendo Dominique dar um pulo de medo. — Acho que estamos seguros por enquanto.
— Isso não faz sentido — replicou ela, virando-se para seu interlocutor.
— Não há senso comum aqui, o objetivo é apenas te matar.
— Eu? — Apontou para si mesma. — Por quê?
— Não sei, mas atacavam apenas você.
— Por… Não… Que lugar é esse? O inferno?
— É um território de caça, e aquelas aves são predadores. — Ele fitou uma árvore. — Suspeito que as árvores também sejam. E você não perguntou, mas me chamo Nicolas.
Antes que Dominique conseguisse sequer começar a entender toda a informação que recebeu em poucas frases, ouviu um farfalhar de asas acima deles, junto com os grasnados que acompanhavam um novo ataque. Arriscou olhar para o céu e viu uma revoada dando círculos em volta de onde estavam.
— O que fez antes? Pode fazer de novo? — disse a idosa em tom de súplica.
— Não com tantos, não tão longe. — Ele respirou fundo. — Corra, você é o alvo.
Foi exatamente o que fez, iniciando mais uma vez o exercício extenuante de sobreviver. Tão logo as aves pousaram em angicos próximos, o ataque recomeçou. Esperava que todas as árvores a atacassem, mas continuava sendo apenas uma por vez, porém com velocidade e precisão intensas.
Teve que abandonar questionamentos e dúvidas que tinha para Nicolas, fechando-se para tudo que não fosse a movimentação contínua que a mantinha viva e respirando. Era assustador saber que bastava um milésimo de atraso ou um passo em falso e teria um destino terrível. Em cada esquiva havia uma expectativa de ser o fim, mas havia algo mais, uma sensação única que fazia o coração bater mais forte e as pernas reagirem mais rápido. Sentia os galhos não somente como uma ameaça, eram um desafio também.
O transe encerrou com um grito de Nicolas:
— Não são os pássaros! É outra coisa movendo-se entre as árvores.
Dominique se lembrou do que sentiu na primeira vez que foi atacada. Algo passando rápido por si, como uma bala. Conseguiria interceptar?
Moveu-se para longe de uma árvore ofensora, desta vez prestando atenção no tronco em vez de simplesmente fugir. Enxergou o momento em que a mancha marrom, muito parecida com uma infecção, atenuou-se e algo pequeno saiu de lá, atravessando o ar até a planta mais próxima de Dominique.
Afastou-se dessa nova árvore controlada e correu até ficar próxima de outra. Percebeu o momento exato que a infecção diminuía no angico, e preparou os dois braços, então viu o objeto minúsculo indo em direção à árvore atrás de si. Moveu a mão como um gavião caçando sua presa e agarrou por pouco seja lá o que fosse.
Cerrou os punhos, sentiu algo sendo esmagado e um líquido pegajoso tocar a pele. Na sua palma, havia um verme branco e rechonchudo. Estava imóvel e deformado pelo aperto, com gosma vertendo por seu corpo. Tomada de nojo, Dominique esfregou a mão na árvore, livrando-se dos restos mortais do verme. Só então notou que não ouvia mais as aves. Olhar ao redor mostrou que havia alguns pássaros empoleirados ali perto, mas a revoada no céu desaparecera.
— Muito bom. — Nicolas se aproximou. — Com isso devemos ter um tempo até uma nova investida.
A satisfação pelo elogio recebido foi rapidamente substituída por preocupação.
— Não acabou?
— Enquanto estivermos aqui, nunca vai acabar. — Ele olhou para o céu.
Dominique fez o mesmo, mas não viu nada demais.
— E como saímos?
— Caminhei por um tempo e não encontrei a saída. — Ele apontou para uma árvore. — Consegue escalar? De cima deve ser possível encontrar.
— E o que eu procuro?
— Algo diferente do resto.
Fazia no mínimo cinquenta anos que Dominique não escalava uma árvore, e nunca o fizera de pijama. Demorou um pouco observando por onde começar, mas assim que iniciou, os movimentos foram fluidos, mãos e pés faziam seu trabalho sem dificuldade alguma. Estranhamente, todos os galhos eram firmes, até mesmo os finos, e logo estava com a cabeça acima da copa, pronta para encontrar o “algo diferente”.
Por mais que observasse, parecia tudo igual. O mesmo tipo de árvore em todo lugar, como uma maquete infinita cujo criador fora tomado por uma gigantesca falta de criatividade. A única variação eram algumas plantas com os corpos quebrados erguidos acima das folhagens. Começou a mirar outras direções, mas encontrou uma situação diferente das demais.
Empoleirado nos galhos de um angico-branco que erguia sua vítima, havia uma ave grande e de penas escuras. Dominique demorou a entender o que pássaro fazia, até que ele tirou o bico de dentro das entranhas do cadáver, exibindo sua cabeça vermelha. Como se soubesse que era observado, o urubu virou a cabeça na direção da idosa.
Até aquele momento, Dominique sentira perigo quando era atacada pelas árvores, sentira a adrenalina correndo pelo corpo, mas o olhar da criatura fez sua garganta secar e os ossos gelarem. Ficou paralisada, observando a ave abrir as longas asas e levantar voo, indo em sua direção.
Era mais rápida do que Dominique imaginava, mas não foi isso que a fez se mover, foram os angicos que o urubu deixava para trás. As folhas perdiam sua coloração verde e assumiam uma tonalidade preta.
Desceu da árvore o mais rápido que pôde, saltando da metade dela para o chão. Antes que explicasse para Nicolas o que vira, as árvores ao redor se encheram de fungos, as folhas murcharam e os galhos pareceram quebradiços pela primeira vez. O homem olhou para cima e disse:
— Originador. Precisamos fugir.
Os dois correram. Diferente da última vez, não havia o grasnar de aves ou a constante ameaça dos galhos, apenas silêncio e a certeza de que o originador, seja lá o que fosse isso, os observava do alto.
A tosse se incidiu aos poucos, ocorrendo esporadicamente conforme falhavam em ganhar distância do urubu. No início era seca, quase machucando, e logo cada tossida era acompanhada de algo subindo pela garganta. Em uma escarrada, Dominique se viu cuspindo muco misturado ao sangue. Ficou ciente da dificuldade em respirar que a acompanhava desde que a ave ganhara os céus, as pernas antes tão capazes bambolearam e a idosa se viu caindo no chão.
Nicolas se interrompeu alguns metros à frente dela. Também tinha a cara de quem estava lutando para continuar em pé, mas diferente de Dominique, não parecia que seu corpo desistiria tão cedo. Ele levou a mão direita ao bolso da calça e pareceu buscar algo lá, se interrompendo quando ouviram a aproximação do originador com um bater de asas. Desta vez Dominique viu a corda ao redor do pescoço de Nicolas apertar e machucar a pele. Em seguida, com um baque, a ave encontrou o chão ao lado direito da idosa, de pescoço e asas quebradas. Infelizmente, nenhum alívio acompanhou a morte do urubu.
— Posso ajudar, mas não posso te salvar. Ninguém pode — disse Nicolas, a voz saindo seca.
— Eu já morri! Não sei por que tô aqui, não sei que lugar é esse.
— E daí? Vai desistir por isso? — Um acesso de tosse o interrompeu por um momento, e Dominique viu a forca apertar seu pescoço. — Você sempre foi assim?
Nem sempre, mas um segundo, ou até mesmo um milésimo, podem destruir o acúmulo de desejos e sonhos de uma vida inteira. Ela deveria ser apenas uma casca vazia de quem fora, mas enquanto se movimentava rápido por aquele bosque e desviava de árvores assassinas, sentiu-se viva mais uma vez. Vida após a morte, não era esse seu desejo pelos últimos anos? Ir para onde poderia voltar a fazer o que desejava? Por que desperdiçava a chance que Deus lhe deu?
Cerrou os punhos com raiva de si, a queimação no peito se tornando combustível para impeli-la adiante, lembrar que ainda vivia, que não era uma mente quebrada.
— O que faremos? — perguntou ela.
— Se for igual a antes, teremos um tempo até o originador voltar, não sinto que o matei de verdade. Suba em uma árvore e procure de novo. E ignore a ave.
Dominique se pôs de pé e andou até o angico-branco mais perto. Escalou como da última vez, porém não sentia mais aquela empolgação quase inocente, era o desespero daqueles que querem sobreviver, impelindo a mão a agarrar o próximo galho e os pés a buscarem apoio. Quando chegou ao topo, viu de imediato o urubu se aproximando. Teria preciosos segundos para vasculhar o ambiente antes que ele chegasse perto demais e trouxesse a doença consigo.
Fitou o lado oposto ao originador e temeu não encontrar o que buscava, mas então enxergou. Era um local discreto, uma ausência de árvores que não veria se não estivesse buscando justamente por uma anormalidade. E lá estava. Infelizmente, era longe e demandaria um bom esforço.
Desceu rápido e abriu a boca para falar com Nicolas, mas um acesso de tosse a interrompeu. Contentou-se em apenas apontar com a mão, e o homem não precisou de mais que isso para começar sua corrida, com Dominique logo atrás.
Não tardou para outros males surgirem. Uma dor no peito ameaçava se alastrar pelo corpo, e erupções cutâneas começaram a surgir, primeiro apenas como manchas avermelhadas, mas logo acumulando uma secreção amarela no meio.
O originador não desceu mais, restando aos dois humanos impulsionar seus corpos além do que eram capazes. Cada passo sendo mais lento e bamboleante que o último. A passagem de tempo tornava-se confusa, os angicos-brancos todos iguais. Foi quase sem perceber que chegaram na clareira.
Não era natural, se é que essa palavra sequer poderia ser aplicada ao lugar. As árvores ao redor estavam chamuscadas, seus galhos mortos sem nenhuma folha. O chão era terra arrasada, afetado por tantas queimadas que estava seco e rachado. Uma cena que deveria causar revolta e indignação, mas que naquele momento causou a Dominique apenas alívio.
Nicolas não perdeu tempo, tirou um papel do bolso e entregou à idosa.
— Pense em sua casa, volte para lá. — A voz dele era entrecortada e rasgada, Dominique imaginou que a sua não estava diferente.
Fez o que homem pediu, faria independente dele ter dito ou não. Fechou os olhos e mentalizou seu quarto. Sentiu uma mudança no ar e logo estava de volta na sua cama. Ainda estava febril e com o corpo cheio de dores, as tosses não sumiram e nem as erupções na pele.
Guardou o papel que Nicolas lhe entregou em um gaveteiro ao lado da cama, então gritou por ajuda. Momentos depois, seu filho abriu a porta assustado. Dominique se permitiu apagar ali, esperando que não fizessem muitas perguntas depois.
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