- Guilherme Lopes Lacerda
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Predadores: A Obsessão - Capítulo 2
Onde Fernando deve sobreviver ao ataque e fugir do metrô.
No último capítulo, conhecemos Fernando, um rapaz que realiza jornada dupla como padeiro e motoboy. Após uma entrega que dá muito errado e que deveria terminar em sua morte, Fernando acorda em um misterioso metrô. Nicolas, um homem engomado e usando uma corda de forca no pescoço apresenta o local como sendo um território de caça habitado por terríveis criaturas. Considerando a explicação como bobagem, Fernando busca uma saída do veículo, mas não vai muito longe antes de ser atacado pelos passageiros.

Avançou um pouco antes de ser pego. A multidão o agarrou e o parou de forma coordenada, cada um segurando partes diferentes do corpo. Desvencilhou-se de dois que prendiam seu braço, e com este livre, bateu em três que restringiam o outro. Era como acertar rochas e seu punho doeu mais com os socos desajeitados do que machucou os agressores.
Berrou e se debateu. Os malditos gritavam, repetindo as mesmas frases. Algo penetrou sua roupa e rasgou sua pele. Sentiu seus braços, ombros e peito sendo abertos com cortes superficiais, mas doloridos mesmo assim. Fechou os olhos.
As vozes pararam abruptamente e não havia mais ninguém lhe segurando ou ferindo. Caiu sentado ao ver os arredores. Seus atacantes estavam suspensos no ar por cordas que saíam do teto e os enforcavam. Encolheu-se no chão para enxergar apenas o metal, tapou a boca e tentou ignorar o cheiro fétido que impregnava o ar. Tremeu ao sentir uma mão em seu ombro.
— Tudo bem?
Virou o rosto devagar, com medo de ver os cadáveres, mas não havia nada, nem as cordas nem os passageiros, o cheiro terrível também desaparecera. Apenas o maluco de terno estava ali, agachado ao seu lado.
— O que… — Fernando tentou formular uma pergunta, mas não sabia como completá-la.
— Você foi atacado pelos predadores. — Nicolas aliviou o aperto da forca no pescoço. — Desculpe não te ajudar de imediato.
— Tu… Foi tu que matou eles?
— Sim.
Fernando se levantou em um pulo e recuou.
— Tu é um monstro! O que fez com eles?
— Os corpos de predadores desaparecem depois de mortos.
— Pare com essa história de predadores! Isso não existe.
— Supondo que não existam e eram apenas pessoas normais, teriam te linchado.
— Mentiroso!
— Olhe para si mesmo, sua roupa está em frangalhos.
Por mais que odiasse admitir, o homem tinha razão. Sua camiseta estava rasgada nos ombros e parte do peito, filetes de sangue escorriam por diversos arranhões na pele.
— Vou esperar você se acalmar. Só saiba que não temos tempo a perder, agora que matamos alguns, o resto virá atrás de nós. — Ele sentou-se em um assento próximo.
— Nós não matamos, tu fez isso sozinho.
— Estamos na mesma posição, você é como eu.
— Não sou!
Nicolas não respondeu, apenas fitou-o. Fernando tentou colocar os pensamentos em ordem: acabara de participar de assassinato, teria que denunciar isso à polícia. Talvez nem acreditassem nele, o que falaria, afinal? “Tentaram me matar e daí um maluco veio e enforcou todo mundo. As vítimas? O corpo delas desapareceu depois”, quase riu de si mesmo, era o verdadeiro insano nessa história. Se ficasse ali, será que alguém iria resgatá-lo? Quem? Não, não podia depender de ninguém. Um passo depois do outro. Primeiro sair do metrô, depois pensar no que fazer.
— Tudo bem, vou entrar no seu jogo. Estamos sendo atacados por predadores, como saímos daqui?
— Atravessando os vagões e procurando uma saída.
— E se formos atacados de novo?
— Deixe comigo, estou familiarizado com o funcionamento desses lugares.
— Tu vai na frente então.
— Claro.
Caminharam até o próximo segmento do metrô. Lá estava o enjoo mais uma vez, era como entrar em uma sala cheia de carniça e respirar fundo. Viram mais pessoas encarando-os, e desta vez havia um homem em pé no meio do caminho. Era alto e parrudo, usando roupas formais que pareciam apertadas e desconfortáveis. Um crachá ficava à mostra no peito e ostentava uma expressão séria e desaprovadora.
— Pare, fique bem para trás — disse Nicolas.
Não precisava pedir, Fernando já dera três passos e daria mais assim que algo ruim ocorresse.
— Vocês precisam ser corrigidos. Não se encaixam na nossa família — disse o homem no meio do vagão.
O braço dele começou a se alongar, a pele do antebraço rasgou, revelando a carne por baixo. Espinhos que mais pareciam pedaços de ossos surgiram do interior do membro. A mão perdeu a forma e tornou-se apenas mais um pedaço daquele chicote de espinhos feito de carne e osso. Fernando acreditava ter estômago forte, mas cada minuto no metrô fazia suas entranhas se revirarem e o cérebro chacoalhar.
Nicolas inclinou o corpo para trás e botou o braço direito à frente da cabeça. No instante seguinte, o chicote se moveu em velocidade assustadora e se enrolou no braço que servia de escudo. O outro membro do predador se transformou e envolveu a cintura e barriga do homem à sua frente. Contrariando intenções anteriores, Fernando pensou em ajudar, mas o que faria? Deu um passo em frente, qualquer coisa era melhor que ver alguém morrer.
Uma corda surgiu a partir do teto e se enroscou no pescoço do homem do chicote e de todos que os encaravam. Foram puxados para cima com um solavanco, não se debateram ou reagiram. Apesar da repulsa, Fernando se recusou a fechar os olhos. Concordara em participar, tinha que ver tudo, até mesmo o desagradável. O corpo dos mortos começou a escurecer a partir das extremidades, a pele rachou e uma gosma se espalhou para fora. Os restos mortais começaram a se tornar poeira e logo nada restava deles.
As cordas desapareceram em seguida. Nicolas baixou o braço direito e com o outro aliviou a forca no pescoço. Sangue embebia o terno onde fora atingido, mas ele não emitiu um gemido de dor sequer. Olhou para trás e falou:
— Vamos continuar.
Começou a caminhar para o próximo vagão, sangue escorrendo dos ferimentos a cada passo dado. Fernando não se aguentou.
— Não podemos continuar, tu não tá nada bem.
Nicolas parou, analisou o braço direito e a barriga.
— Estou bem, conseguiremos chegar na saída desse jeito.
— Eu não consigo. — Fernando segurou o ferido pelos ombros e o empurrou até um assento, forçando-o a se sentar.
— Precisamos pelo menos estancar isso. — Tirou a mochila de entregas das costas, colocando-a ao lado de si. — Tem alguma faca para cortarmos a roupa?
— Infelizmente não, você não tem nada nessa mochila?
Fernando revirou os olhos. Era uma mochila de entregas, não uma caixa de primeiros socorros. Mesmo assim, se agachou e a abriu, desejando ter algo que o ajudasse. Franziu o cenho com o que viu. Ali, no meio da mochila, solto como estivesse em um forno, estava um pão. Pegou ele com a mão direita, estava aquecido ainda, possuía formato achatado e comprido, a casca levemente crocante. Era igual a um dos ciabatta que fazia na padaria.
— Você entrega pães?
— Que pergunta é essa? — Olhou o pão por diversos ângulos, não fazia muito sentido ele estar ali. Na verdade, nada fazia sentido algum, então talvez não fazer sentido fazia sentido. Uma ideia surgiu em sua mente, como se fosse o correto a se fazer. — Coma.
— Por quê?
— Come!
O homem pegou o pão e o aproximou da boca, dando uma mordida delicada. As próximas foram ávidas e em poucos segundos nada restava. Fernando sentiu uma queimação no braço direito e na barriga, mas não lhes deu atenção pois seus olhos mesmerizaram-se com os acontecimentos à sua frente. As feridas de Nicolas fecharam-se, a carne foi reconstruída e logo depois coberta por uma camada de pele. O único resquício de um ferimento era o sangue empapando a roupa.
— Tu é humano? — perguntou Fernando, encarando o homem.
— Tanto quanto você.
— Duvido, não fui eu quem fechou feridas sérias.
— Foi você sim. Ou melhor, foi sua mochila.
— Ah sim, a mochila criou um pão mágico que cura todas as feridas. — Fernando riu. — Isso é ridículo.
— Mas é a realidade. — Nicolas passou a mão pelo braço curado. — Pegue seu telefone.
Sentindo-se idiota por não pensar nisso antes, moveu a mão para pegar o celular. Só então notou diversos ferimentos no seu braço direito, parecidos com aqueles do chicote, porém mais leves. A visão do sangue lhe trouxe a dor, não só no braço, como na barriga. Olhou para baixo e notou manchas de sangue na camiseta. Com os joelhos prestes a cederem, levantou a roupa e viu ferimentos no abdômen, idênticos ao do braço.
Sem aviso, Nicolas se avizinhou, mais perto do que Fernando gostaria, observando com atenção as feridas. Não tinha forças para afastá-lo. Precisava se acalmar, pensar com clareza. Sentou-se em um banco próximo e aguardou.
Minutos se passaram, mas não conseguiu sossegar. Fitou os machucados durante o intervalo, notando que cicatrizavam a uma velocidade espantosa — só não tanto quanto as de seu companheiro maluco — e logo estava curado. Deixara de ser humano sem notar? Nunca se recuperou assim. Inspecionou o corpo em busca dos arranhões de antes, sem sucesso em encontrá-los.
Ouviu um estalo de dedos na sua frente.
— Não podemos esperar mais.
Sem cabeça para questionar ou tentar entender, Fernando pegou seu celular e tentou, sem sucesso, fazer uma ligação para a polícia.
— Não é possível se comunicar com o lado de fora. Agora, anote esse número e salve o contato. — Nicolas ditou um número de telefone.
— É o seu? Para quê?
— Quero que me ligue assim que sair daqui.
— Nunca mais quero te ver.
Se ficou ofendido, não demonstrou, apenas replicou:
— Anote mesmo assim, é só não ligar.
Não querendo perder a única ajuda que encontrara, salvou o contato. Feito isso, olhou as horas, já passava das vinte, mas ali ainda parecia ser o final da tarde. Como isso estava acontecendo em Porto Alegre sem ninguém mais notar? Antes que chegasse a uma conclusão, o horário mudou para as quinze.
— Vamos continuar — disse Nicolas.
Chegaram no próximo vagão. Ele estava cheio de pessoas olhando o nada e, para o alívio de Fernando, havia uma porta de desembarque.
— Graças a Deus! — Correu até a saída. — Como saímos agora?
— Para onde você quer voltar?
— Para minha casa, é óbvio.
— Então vá.
A porta se abriu de repente, revelando uma estação. Havia pichações por toda a parte escrito “Volte”, “Fique aí” e “Aqui é sua família”. Fernando botou a cabeça para fora do metrô e olhou para os lados. Na direita havia uma escadaria terminando em uma passarela.
Não entendeu muito as palavras de Nicolas, mas não chegaria em casa se ficasse enrolando. Botou um pé fora do vagão e tudo se desfez no instante seguinte.
***
Estava em sua casa, na cama. Se despreguiçou, espantando a nebulosidade da mente. Lembrou-se então das entregas, do roubo, da morte e do metrô. Acendeu a luz e examinou seu corpo. Nada de ferimentos, nem mesmo uma cicatriz. Fora apenas uma fantasia?
A moto! Se fosse verdade, não estaria com ela.
Saiu do quarto, passando de fininho pela sala, onde Gabriel assistia televisão. Chegou na garagem e encontrou seu veículo. Observou-o por todos os ângulos possíveis. Estava em perfeito estado. Notou a mochila de entregas em um canto. Abriu-a e viu apenas o vazio, deixou escapar uma risada baixa.
— Fê, tudo bem aí? — Ouviu a voz de Gabriel vindo de trás.
— Sim. — Virou-se com um sorriso no rosto. — Só tive um pesadelo loucaço.
O namorado se aproximou, segurando e acariciando a mão de Fernando.
— Eu já disse: tu se puxa demais. Por que não pede ajuda para tua família?
Desvencilhou-se.
— Não posso, tu sabe disso.
— Pode sim.
— Hoje não…
Gabriel negou com a cabeça.
— Vamos para a sala, faz tempo que não vemos algo juntos.
— Eu tenho que dormir, preciso estar na padaria depois.
— No domingo?
Fernando ficou em silêncio. O próximo dia era domingo mesmo? Nem se lembrava de ver a semana passando. Agradeceu pelo presente inesperado.
— O que está passando de bom?
— As mesmas porcarias de sempre.
Ficaram algumas horas assistindo televisão no sofá. Viram um pouco do noticiário, com as matérias recorrentes: corrupção, instabilidade no clima e desmatamento. No entanto, uma notícia despertou sua curiosidade: uma série de desaparecimentos próximos ao metrô de Porto Alegre. A matéria relatava a vida das pessoas, todos adultos trabalhadores, que sumiram nos últimos quinze dias, um dos desaparecidos inclusive era parente de um funcionário do canal que assistiam. A polícia conseguiu rastrear os movimentos de todos os cinco desaparecidos até entrarem no transporte, e a partir daí era como se tivessem desaparecido. Ninguém mais os tinha visto. Olhou para Gabriel, que assistia à reportagem sem muito interesse. Será que teria a mesma reação se não fosse pelo sonho? Sentiu um incômodo no braço e na barriga.
Saíram da TV aberta e botaram um filme qualquer no streaming. Como era de praxe, seu namorado botou uma comédia romântica leve e de humor pastelão. Exatamente o que precisavam para relaxar no final do dia. Ao término do filme, foram os dois para a cama.
Ouviu o tique-taque de um relógio, portas abrindo e fechando. Sentiu mãos tocando seus braços e coxas, apalpando, agarrando, testando. Estavam puxando-o, mas pararam de repente. Desapareceram, deixando apenas a sensação de que poderiam voltar quando quisessem.
Fernando acordou de madrugada com o corpo suado e a respiração acelerada. Foi até a cozinha e se serviu de um copo de água. Enquanto o líquido gelado descia pela garganta, seu celular vibrou. Nem queria ver a notificação recebida, mas então lembrou-se do número salvo no sonho. Devia ser apenas um delírio causado pela exaustão. Mesmo assim, pegou o aparelho e visualizou os contatos. Seus dedos pararam quando encontrou o que não queria achar: Nicolas.
Em negação, procurou pela casa a camiseta que usava no sonho e encontrou-a no fundo da lixeira, embaixo de embalagens de plástico. Estava rasgada e possuía manchas vermelhas. Enfiou-a de volta no saco, o mais fundo que conseguiu.
Ligou para o número encontrado antes. Chamou durante alguns segundos e então alguém atendeu.
— Nicolas aqui, quem fala?
Fernando segurou a respiração. Estava pirando? Talvez devesse mostrar para Gabriel o contato e explicar tudo que viu. Não, o namorado já tinha muito com o que lidar.
Se identificou para Nicolas e conversou sobre o que viram e ouviram naquele lugar amaldiçoado.
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