- Guilherme Lopes Lacerda
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Predadores - Capítulo 1
O início de tudo

O alarme tocou às vinte e duas horas e foi desligado logo em seguida por mãos que memorizaram há muito o ponto exato que deveriam tocar na mesa de cabeceira. Levantou da cama e seguiu sua rotina: tomar banho, escovar os dentes, trocar de roupas e comer algo para forrar o estômago. Trinta minutos depois subiu na moto e disparou rua afora. A pouca movimentação agilizou seu percurso, que em condições normais demoraria cinco ou dez minutos a mais para ser feito, mas como nem tudo eram flores, o vazio da noite cobrava seu preço. A cada parada, a cada sinal vermelho, Fernando corria os olhos pelos arredores, relaxando só quando a moto estava em movimento novamente.
Chegou na padaria faltando quinze minutos para as vinte e três horas. Ali seu trabalho começou. Limpou todo o local primeiro e, em seguida, passou ao preparo dos produtos. Mesmo usando diferentes receitas, o passo a passo era parecido: preparar a massa, deixar na estufa, preparar o próximo pão e, por fim, assar os já fermentados. Eram movimentos braçais e cansativos, auxiliados pelas máquinas que conseguiu financiar, mas seu corpo se acostumara após tantos meses nessa rotina. Ainda assim, prestava atenção em cada etapa, nunca deixando a mente divagar no meio do trabalho. Nas poucas vezes que fazia isso, parava a atividade e descansava por meio minuto.
As horas passaram e o alarme das sete tocou, anunciando o momento de abrir a padaria. Distribuiu os pães na mesma organização de sempre, lavou o rosto, passou pano uma última vez nas mesas, alinhou as cadeiras e destrancou a porta da frente. Não demorou para seus clientes habituais aparecerem.
— Quando tu vai contratar alguém pra ficar no balcão? — perguntou Adair, um senhor em seus setenta anos. Preciso como um relógio suíço, aparecia todo dia às sete e meia.
Fernando coçou os olhos.
— Não quero ter que contratar alguém para demitir de novo tão rápido. De repente, quando a padaria voltar a ter um lucro bom eu procuro um funcionário. Aliás, seu Adair, o que acha de trabalhar aqui?
— Bah, nem fala isso. Eu consigo contar o dinheiro, mas essa maquininha sua eu não sei usar não.
— Eu te ensino, é bem fácil. — Fernando movimentou as mãos como se estivesse varrendo algo. — Mas tem que limpar o banheiro também.
— Não, nem pensar! Sou velho demais para isso.
Os dois se despediram e seguiram para seus dias. Logo chegou as dez horas e Fernando fechou a padaria. Contabilizou o que vendeu e o que sobrou. Trabalhando sozinho, sua produção diária diminuiu, mas ainda assim não conseguia vender tudo. O prejuízo era menor comparado com os meses anteriores. Sentia-se triste pelos funcionários que demitira, mas era isso ou a falência inevitável.
Botou alguns dos pães que sobraram no baú da moto e os demais ensacou e largou em um cesto vazio que tinha instalado na frente da padaria. Logo acima do recipiente, um papel ensacado dizia “Pegue quantos precisar”. Teria problemas se alguém denunciasse para a vigilância sanitária, porém acreditava que era melhor correr este risco do que jogar a comida fora.
Trancou tudo, subiu na moto e voltou para casa. Chegando lá, se permitiu alguns minutos de descanso antes de trocar de roupas, pegar a mochila de entregador e sair para seu segundo trabalho. Abriu o aplicativo às onze horas e as entregas começaram. Em cada trajeto, sua atenção se movia entre os carros, as ruas esburacadas e o tempo decorrido. A cada pedido finalizado, calculava o quanto ganhara e quanto faltava para atingir a meta do dia. Não precisava de muito, apenas do dinheiro suficiente para zerar o prejuízo com a padaria.
Pouco depois das quatorze horas, recebeu um pedido de dois almoços não muito longe de onde estava. Passou no restaurante e saiu em direção ao destino. Chegou em uma rua estreita, com casas próximas uma das outras. O chão, apesar de asfaltado, estava desregulado em muitos níveis e com buracos aqui e ali, nada que Fernando não estivesse acostumado.
Parou em frente ao local, uma casa toda fechada com uma grade pintada de azul e arame farpado na parte superior. Buzinou algumas vezes e saiu da moto. Passou um minuto e nem sinal do sujeito. Perfeito, era mais um daqueles babacas que pediam comida e nem se preocupavam em ver se estava chegando. Buzinou mais uma vez, bateu palmas e gritou. Nada.
Olhou para o celular, verificando se não estava no lugar errado, talvez o babaca fosse ele mesmo. Ouviu passos e se virou, apenas para dar de cara com dois homens. Não, garotos. Estavam próximos a ele, um apontando uma pistola, a mira oscilando tanto que poderiam diagnosticá-lo com Parkinson.
Não pensou duas vezes, apenas levantou os braços e pediu:
— Por favor, a moto não.
— Celular e carteira! — gritou o desarmado. Este parecia um pouco mais velho que o outro.
Fez como pediram, já fora assaltado outra vez e sabia que o melhor caminho era obedecer, mas não pôde se impedir de falar enquanto entregava os pertences.
— A moto não, eu preciso dela.
— Cala a boca!
Fernando se afastou, deixando os dois subirem no veículo. O ronco do motor fez o padeiro ir contra o senso comum e, antes que pudesse raciocinar, lançou-se na direção dos ladrões. O mais jovem, sentado atrás, notou a movimentação e gritou. Um estouro repentino abafou o berro.
— Merda! — berrou o atirador, olhando para a arma nas mãos.
— Fica quieto — gritou o mais velho, então acelerou e disparou para longe.
Fernando nem notou que estava caído no chão, só viu os dois indo embora, levando sua moto. Não teria dinheiro para comprar outra, tinha que abandonar a padaria. Tudo culpa dele. Era burro, ignorante, teimoso. Desculpou-se com o pai e não viu mais nada.
***
Despertou com as batidas do próprio coração. Sobressaltou-se, notando que estava sentado em um assento de plástico duro. Na sua frente havia mais uma fileira deles. Levantou o olhar e deparou-se com diversas janelas dispostas lado a lado ao longo de um vagão. Através delas via um lago enorme.
Inclinou-se para a frente, apoiando os cotovelos nas coxas e observando o chão metálico e sujo. Estava apenas no metrô, o assalto fora um sonho. Contudo, o que fazia ali? Morava a quilômetros da estação mais próxima.
Viu no assento ao lado sua mochila de entregas e, ainda que estranhasse sua presença, a colocou sobre o colo. Notou luzes vindo de trás e virou-se. Ao longe, havia prédios altos e amontados que superavam quinze andares, a sua maioria com letreiros de neon cujas palavras não faziam sentido algum. Pela baixa iluminação, deveria ser o final da tarde, porém não foi capaz de identificar a posição do sol devido às sombras se espalharem em diferentes direções. Fitou novamente o lago, desta vez com mais atenção. Ali estava o sol, lançando uma luz alaranjada sobre a água em uma cena muito parecida com o que via no Gasômetro.
Se levantou, colocando a mochila nas costas, e bateu de leve com os nós dos dedos na janela mais próxima. Não parecia ser um televisor. Deu-se por vencido no enigma, queria apenas ir para casa.
Procurou algum indicativo de sua localização, um mapa da linha ou qualquer coisa que o ajudasse. Encontrou no final do vagão uma esperança: um homem sentado usando um uniforme azul com o logotipo de uma empresa. Ele não tirava o olho da janela na sua frente. Foi até lá, segurando-se nas barras de apoio.
— Ei, onde estamos? — Sem resposta. — Alô? Está vivo? Tô falando contigo. Cara, eu tô perdido, não pode falar nada mesmo? Por favor, senhor. Eu só preciso saber onde eu estou. Onde fica a próxima estação? Quero descer nela.
Balançou a mão em frente ao rosto do ouvinte. Nem piscou. Fernando suspirou e deu meia-volta bem a tempo de ver uma das portas entre os vagões se abrindo. Do outro lado estava o que definiu como um trabalhador estereotipado de escritório, com direito a terno e gravata, cabelos curtos penteados para o lado e fixados com gel. Era alto e um pouco fora de forma. Não duvidaria se ele de repente apresentasse uma carteirinha da OAB.
O homem entrou no vagão e se aproximou. A ilusão do estereótipo desapareceu quando Fernando notou que a gravata era, na verdade, uma corda enrolada no pescoço por um nó de forca. Em situações normais, teria obedecido a regra de não dar trela para maluco, mas como ele parecia mais responsivo que o outro passageiro, permitiu-se arriscar:
— Sabe onde estamos?
— Sei. Você sabe?
Fernando arqueou as sobrancelhas.
— Claro que não, por isso te perguntei. — Vendo que um silêncio estava prestes a se formar entre os dois, complementou: — Onde estamos?
— Você é novo então. Sente-se. — Ele indicou um assento perto dos dois. — Minhas respostas não vão fazer sentido, vai entender apenas depois de um tempo.
O homem estava certo, Fernando não compreendeu nada. Mesmo assim, acatou o pedido, o outro se sentou ao seu lado em seguida.
— Você não perguntou, mas acho bom nos apresentarmos antes. Meu nome é Nicolas, e estamos no que é chamado de território de caça.
Fernando tentou manter a expressão neutra, não queria o outro vendo o arrependimento estampado em sua cara.
— A qualquer momento, seres estranhos chamados predadores vão aparecer e nos caçar. Temos que sair antes que fiquem atiçados demais e chamem predadores maiores. — A seriedade e o tom monótono não combinavam com as palavras usadas. — Estou procurando mais respostas, por enquanto isso é tudo que eu consigo falar e que faz sentido. Alguma dúvida?
— Não, não. Acho que entendi.
— Não, não entendeu.
— Entendi sim. — Fernando se levantou. — Eu tenho que sair, sabe, está ficando tarde. Eu preciso ir para casa.
Se afastou do maluco e procurou a porta de desembarque, apenas para notar que não tinha uma em nenhum dos lados. Talvez estivesse em um dos outros vagões. Olhou a porta usada pelo fantasista. Ainda estava aberta.
— Está procurando a saída? — perguntou Nicolas.
— Como eu disse antes, sim.
— Então eu vou contigo.
— Eu acho que consigo caminhar sozinho, sou bem grandinho.
— Você até pode intimidar pessoas normais, mas não vai funcionar aqui. Insisto que devo ir contigo.
E claro que ele era do tipo grudento.
— Tudo bem, mas não fica cheirando meu cangote.
Com o maluco atrás de si, foi para o próximo carro. Encontrou-o lotado com homens e mulheres de todas as idades, usando o mesmo uniforme azul. Tentou conversar com eles, mas recebeu um tratamento tão frio quanto antes. Também não havia porta de desembarque ali.
Passaram por mais três vagões, enfrentando em todos o mesmo problema. No último, olhou em direção ao lago e notou que a paisagem não mudara, mesmo o metrô estando sempre em movimento. Fitou a direção oposta. Os prédios se mantinham, porém enxergava-os de outro ângulo. A ideia de perguntar sobre o fenômeno foi embora assim que pôs os olhos em Nicolas.
No carro seguinte, deparou-se com pessoas responsivas. O único, e grave, problema era que todos no vagão o encaravam. Um formigamento surgiu nos ombros, onde a alça da mochila ficava. Além do mais, sentia-se enjoado. Caminhou até a passageira mais próxima, lutando contra uma repulsa crescente em cada passo dado.
— Com licença, sabe me dizer em qual vagão fica a saída?
A passageira respondeu em tom robótico:
— Você não deveria estar aqui, este vagão é exclusivo.
— Eu… me desculpe. Só quero descobrir onde está a saída.
— Você não deveria estar aqui, este vagão é exclusivo.
— Certo, sem estresse. Vou sair.
Andou na direção do próximo carro. As pessoas por quem passava repetiam as mesmas frases.
— Você não deveria estar aqui.
— É nosso vagão, só nós o merecemos.
— Este vagão nos foi dado, saia.
— Você não se esforçou para estar aqui.
As vozes pararam ao chegar na metade do caminho. Algo mudou no olhar dos passageiros. Se antes o observavam como se fosse apenas um sovadinho em meio a tantos outros, passaram a enxergá-lo com um brilho nos olhos de alguém faminto que se depara com o último pão na prateleira. Deu um passo apressado e as pessoas lançaram-se sobre ele.
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