Predadores - Capítulo 1

O início de tudo

O desenho mostra um homem de costas. Ele usa uma mochila de entregador, camiseta de manga curta e possui pele morena. Na frente do homem há um passageiro sentado, com olhar ausente. Um pouco mais afastado, está um terceiro homem, este usando terno e, no lugar de uma gravata, está uma corda de forca. Na direita, uma janela mostra o por do sol no lago.

O alarme tocou às vinte e duas horas e foi desligado logo em seguida por mãos que memorizaram há muito o ponto exato que deveriam tocar na mesa de cabeceira. Levantou da cama e seguiu sua rotina: tomar banho, escovar os dentes, trocar de roupas e comer algo para forrar o estômago. Trinta minutos depois subiu na moto e disparou rua afora. A pouca movimentação agilizou seu percurso, que em condições normais demoraria cinco ou dez minutos a mais para ser feito, mas como nem tudo eram flores, o vazio da noite cobrava seu preço. A cada parada, a cada sinal vermelho, Fernando corria os olhos pelos arredores, relaxando só quando a moto estava em movimento novamente.

Chegou na padaria faltando quinze minutos para as vinte e três horas. Ali seu trabalho começou. Limpou todo o local primeiro e, em seguida, passou ao preparo dos produtos. Mesmo usando diferentes receitas, o passo a passo era parecido: preparar a massa, deixar na estufa, preparar o próximo pão e, por fim, assar os já fermentados. Eram movimentos braçais e cansativos, auxiliados pelas máquinas que conseguiu financiar, mas seu corpo se acostumara após tantos meses nessa rotina. Ainda assim, prestava atenção em cada etapa, nunca deixando a mente divagar no meio do trabalho. Nas poucas vezes que fazia isso, parava a atividade e descansava por meio minuto.

As horas passaram e o alarme das sete tocou, anunciando o momento de abrir a padaria. Distribuiu os pães na mesma organização de sempre, lavou o rosto, passou pano uma última vez nas mesas, alinhou as cadeiras e destrancou a porta da frente. Não demorou para seus clientes habituais aparecerem.

— Quando tu vai contratar alguém pra ficar no balcão? — perguntou Adair, um senhor em seus setenta anos. Preciso como um relógio suíço, aparecia todo dia às sete e meia.

Fernando coçou os olhos.

— Não quero ter que contratar alguém para demitir de novo tão rápido. De repente, quando a padaria voltar a ter um lucro bom eu procuro um funcionário. Aliás, seu Adair, o que acha de trabalhar aqui?

— Bah, nem fala isso. Eu consigo contar o dinheiro, mas essa maquininha sua eu não sei usar não.

— Eu te ensino, é bem fácil. — Fernando movimentou as mãos como se estivesse varrendo algo. — Mas tem que limpar o banheiro também.

— Não, nem pensar! Sou velho demais para isso.

Os dois se despediram e seguiram para seus dias. Logo chegou as dez horas e Fernando fechou a padaria. Contabilizou o que vendeu e o que sobrou. Trabalhando sozinho, sua produção diária diminuiu, mas ainda assim não conseguia vender tudo. O prejuízo era menor comparado com os meses anteriores. Sentia-se triste pelos funcionários que demitira, mas era isso ou a falência inevitável.

Botou alguns dos pães que sobraram no baú da moto e os demais ensacou e largou em um cesto vazio que tinha instalado na frente da padaria. Logo acima do recipiente, um papel ensacado dizia “Pegue quantos precisar”. Teria problemas se alguém denunciasse para a vigilância sanitária, porém acreditava que era melhor correr este risco do que jogar a comida fora.

Trancou tudo, subiu na moto e voltou para casa. Chegando lá, se permitiu alguns minutos de descanso antes de trocar de roupas, pegar a mochila de entregador e sair para seu segundo trabalho. Abriu o aplicativo às onze horas e as entregas começaram. Em cada trajeto, sua atenção se movia entre os carros, as ruas esburacadas e o tempo decorrido. A cada pedido finalizado, calculava o quanto ganhara e quanto faltava para atingir a meta do dia. Não precisava de muito, apenas do dinheiro suficiente para zerar o prejuízo com a padaria.

Pouco depois das quatorze horas, recebeu um pedido de dois almoços não muito longe de onde estava. Passou no restaurante e saiu em direção ao destino. Chegou em uma rua estreita, com casas próximas uma das outras. O chão, apesar de asfaltado, estava desregulado em muitos níveis e com buracos aqui e ali, nada que Fernando não estivesse acostumado.

Parou em frente ao local, uma casa toda fechada com uma grade pintada de azul e arame farpado na parte superior. Buzinou algumas vezes e saiu da moto. Passou um minuto e nem sinal do sujeito. Perfeito, era mais um daqueles babacas que pediam comida e nem se preocupavam em ver se estava chegando. Buzinou mais uma vez, bateu palmas e gritou. Nada.

Olhou para o celular, verificando se não estava no lugar errado, talvez o babaca fosse ele mesmo. Ouviu passos e se virou, apenas para dar de cara com dois homens. Não, garotos. Estavam próximos a ele, um apontando uma pistola, a mira oscilando tanto que poderiam diagnosticá-lo com Parkinson.

Não pensou duas vezes, apenas levantou os braços e pediu:

— Por favor, a moto não.

— Celular e carteira! — gritou o desarmado. Este parecia um pouco mais velho que o outro.

Fez como pediram, já fora assaltado outra vez e sabia que o melhor caminho era obedecer, mas não pôde se impedir de falar enquanto entregava os pertences.

— A moto não, eu preciso dela.

— Cala a boca!

Fernando se afastou, deixando os dois subirem no veículo. O ronco do motor fez o padeiro ir contra o senso comum e, antes que pudesse raciocinar, lançou-se na direção dos ladrões. O mais jovem, sentado atrás, notou a movimentação e gritou. Um estouro repentino abafou o berro.

— Merda! — berrou o atirador, olhando para a arma nas mãos.

— Fica quieto — gritou o mais velho, então acelerou e disparou para longe.

Fernando nem notou que estava caído no chão, só viu os dois indo embora, levando sua moto. Não teria dinheiro para comprar outra, tinha que abandonar a padaria. Tudo culpa dele. Era burro, ignorante, teimoso. Desculpou-se com o pai e não viu mais nada.

***

Despertou com as batidas do próprio coração. Sobressaltou-se, notando que estava sentado em um assento de plástico duro. Na sua frente havia mais uma fileira deles. Levantou o olhar e deparou-se com diversas janelas dispostas lado a lado ao longo de um vagão. Através delas via um lago enorme.

Inclinou-se para a frente, apoiando os cotovelos nas coxas e observando o chão metálico e sujo. Estava apenas no metrô, o assalto fora um sonho. Contudo, o que fazia ali? Morava a quilômetros da estação mais próxima.

Viu no assento ao lado sua mochila de entregas e, ainda que estranhasse sua presença, a colocou sobre o colo. Notou luzes vindo de trás e virou-se. Ao longe, havia prédios altos e amontados que superavam quinze andares, a sua maioria com letreiros de neon cujas palavras não faziam sentido algum. Pela baixa iluminação, deveria ser o final da tarde, porém não foi capaz de identificar a posição do sol devido às sombras se espalharem em diferentes direções. Fitou novamente o lago, desta vez com mais atenção. Ali estava o sol, lançando uma luz alaranjada sobre a água em uma cena muito parecida com o que via no Gasômetro.

Se levantou, colocando a mochila nas costas, e bateu de leve com os nós dos dedos na janela mais próxima. Não parecia ser um televisor. Deu-se por vencido no enigma, queria apenas ir para casa.

Procurou algum indicativo de sua localização, um mapa da linha ou qualquer coisa que o ajudasse. Encontrou no final do vagão uma esperança: um homem sentado usando um uniforme azul com o logotipo de uma empresa. Ele não tirava o olho da janela na sua frente. Foi até lá, segurando-se nas barras de apoio.

— Ei, onde estamos? — Sem resposta. — Alô? Está vivo? Tô falando contigo. Cara, eu tô perdido, não pode falar nada mesmo? Por favor, senhor. Eu só preciso saber onde eu estou. Onde fica a próxima estação? Quero descer nela.

Balançou a mão em frente ao rosto do ouvinte. Nem piscou. Fernando suspirou e deu meia-volta bem a tempo de ver uma das portas entre os vagões se abrindo. Do outro lado estava o que definiu como um trabalhador estereotipado de escritório, com direito a terno e gravata, cabelos curtos penteados para o lado e fixados com gel. Era alto e um pouco fora de forma. Não duvidaria se ele de repente apresentasse uma carteirinha da OAB.

O homem entrou no vagão e se aproximou. A ilusão do estereótipo desapareceu quando Fernando notou que a gravata era, na verdade, uma corda enrolada no pescoço por um nó de forca. Em situações normais, teria obedecido a regra de não dar trela para maluco, mas como ele parecia mais responsivo que o outro passageiro, permitiu-se arriscar:

— Sabe onde estamos?

— Sei. Você sabe?

Fernando arqueou as sobrancelhas.

— Claro que não, por isso te perguntei. — Vendo que um silêncio estava prestes a se formar entre os dois, complementou: — Onde estamos?

— Você é novo então. Sente-se. — Ele indicou um assento perto dos dois. — Minhas respostas não vão fazer sentido, vai entender apenas depois de um tempo.

O homem estava certo, Fernando não compreendeu nada. Mesmo assim, acatou o pedido, o outro se sentou ao seu lado em seguida.

— Você não perguntou, mas acho bom nos apresentarmos antes. Meu nome é Nicolas, e estamos no que é chamado de território de caça.

Fernando tentou manter a expressão neutra, não queria o outro vendo o arrependimento estampado em sua cara.

— A qualquer momento, seres estranhos chamados predadores vão aparecer e nos caçar. Temos que sair antes que fiquem atiçados demais e chamem predadores maiores. — A seriedade e o tom monótono não combinavam com as palavras usadas. — Estou procurando mais respostas, por enquanto isso é tudo que eu consigo falar e que faz sentido. Alguma dúvida?

— Não, não. Acho que entendi.

— Não, não entendeu.

— Entendi sim. — Fernando se levantou. — Eu tenho que sair, sabe, está ficando tarde. Eu preciso ir para casa.

Se afastou do maluco e procurou a porta de desembarque, apenas para notar que não tinha uma em nenhum dos lados. Talvez estivesse em um dos outros vagões. Olhou a porta usada pelo fantasista. Ainda estava aberta.

— Está procurando a saída? — perguntou Nicolas.

— Como eu disse antes, sim.

— Então eu vou contigo.

— Eu acho que consigo caminhar sozinho, sou bem grandinho.

— Você até pode intimidar pessoas normais, mas não vai funcionar aqui. Insisto que devo ir contigo.

E claro que ele era do tipo grudento.

— Tudo bem, mas não fica cheirando meu cangote.

Com o maluco atrás de si, foi para o próximo carro. Encontrou-o lotado com homens e mulheres de todas as idades, usando o mesmo uniforme azul. Tentou conversar com eles, mas recebeu um tratamento tão frio quanto antes. Também não havia porta de desembarque ali.

Passaram por mais três vagões, enfrentando em todos o mesmo problema. No último, olhou em direção ao lago e notou que a paisagem não mudara, mesmo o metrô estando sempre em movimento. Fitou a direção oposta. Os prédios se mantinham, porém enxergava-os de outro ângulo. A ideia de perguntar sobre o fenômeno foi embora assim que pôs os olhos em Nicolas.

No carro seguinte, deparou-se com pessoas responsivas. O único, e grave, problema era que todos no vagão o encaravam. Um formigamento surgiu nos ombros, onde a alça da mochila ficava. Além do mais, sentia-se enjoado. Caminhou até a passageira mais próxima, lutando contra uma repulsa crescente em cada passo dado.

— Com licença, sabe me dizer em qual vagão fica a saída?

A passageira respondeu em tom robótico:

— Você não deveria estar aqui, este vagão é exclusivo.

— Eu… me desculpe. Só quero descobrir onde está a saída.

— Você não deveria estar aqui, este vagão é exclusivo.

— Certo, sem estresse. Vou sair.

Andou na direção do próximo carro. As pessoas por quem passava repetiam as mesmas frases.

— Você não deveria estar aqui.

— É nosso vagão, só nós o merecemos.

— Este vagão nos foi dado, saia.

— Você não se esforçou para estar aqui.

As vozes pararam ao chegar na metade do caminho. Algo mudou no olhar dos passageiros. Se antes o observavam como se fosse apenas um sovadinho em meio a tantos outros, passaram a enxergá-lo com um brilho nos olhos de alguém faminto que se depara com o último pão na prateleira. Deu um passo apressado e as pessoas lançaram-se sobre ele.

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